contracampo revista de cinema
O Primeiro Dia
, de Walter Salles e Daniela Thomas (Brasil/França, 1999)

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Fernanda Torres em O Primeiro Dia,
de Walter Salles e Daniela Thomas

A carreira inteira de Walter Salles (até agora, com quatro longas e alguns curtas) pode ser interpretada como um olhar sobre o recomeço: todos os seus personagens principais olham para a vida como se cada minuto fosse uma chance de tentar de novo, de poder reviver do zero a vida. Daí os temas da viagem, da fuga, da perda, do encontro dos opostos, dos avessos do acaso. O Primeiro Dia explicita esse gosto pelos "excluídos", que nesse caso são os excluídos da vida: o homem que decide largar a esposa às vésperas do dia 1º de janeiro de 2000, a professora cujo mundo explodiu e vai tentar o suicídio, o presidiário que tem que matar o melhor amigo para fugir da cadeia, o malandro que tem que se foragir mas resolve fazer a última visita à casa, um velho detento que acha que o mundo inteiro vai mudar na passagem do ano ("vai mudar tudo, o um vai virar dois, o nove vai virar zero, o outro nove vai virar zero, o outro nove vai virar zero também": impressionante interpretação de Nélson Sargento).

O problema em todos os seus filmes — sejam os co-dirigidos por Daniela Thomas sejam os de direção solo — é que parecem ser movimentos sempre feitos em suspenso, como que surgidos numa redoma de vidro. Daí a pobreza sempre estar associada a uma certa pureza da imediatidade, da espontaneidade — uma idealização tanto do caminho para o Nordeste em Central do Brasil como a favela como lugar possível da redenção. É claro que não se trata — e nisso uma ingenuidade de Walter Salles nem seria de 'bom tom', 'bom tom' que parece ser sempre perseguido em seus longas — de excluir a violência das favelas. Aliás, é exatamente no momento em que a violência se mistura ao ritual, quando Luís Carlos Vasconcellos (interpretação fantástica de herói trágico, contenção de movimentos que aprofundam em muito o personagem) aponta a arma para Mateus Nachtergaele (impressionantmente deslocado do filme, a superinterpretação [overacting] não sabendo ser interpretada nem como não-realista nem como naturalismo exacerbado), que o filme alcança seu melhor momento, junto com Fernanda Torres caminhando a esmo pelas ruas.

A questão crucial do filme, entretanto, parece ser a parte mais fraca. No clímax, momento de encontro das duas classes sociais numa cobertura de prédios, é quando a idealização cumpre o seu papel pernicioso. É certo que os votos de um futuro em que "ninguém mais morre nessa cidade, ninguém mais morre nesse país", em que as balas de revólver atiradas para cima se misturam aos fogos de artifício, expressam uma boa vontade em direção a um futuro. Mas é justamente essa 'boa vontade' que parece ser perigosa. O topo do prédio é um lugar mítico onde todos os nossos "três desejos" podem ser realizados. O problema depois é tentar confrontar esse topo do prédio com aquilo que acontece lá embaixo. Não se trata aqui dos ressentimentos de praxe em relação a Walter Salles, que ele não deveria filmar os pobres por ser de família milionária, mas simplesmente do fato de que Salles parece filmar os pobres sempre do ponto de vista de quem está no topo do prédio. Mesmo que ao final do filme haja um epílogo na praia onde a realidade parece voltar, onde o mundo volta às agruras de sempre, é tudo filmado com a opção por um esteticismo complicado, uma bela imagem e muita água separando Fernanda Torres do que realmente acontece "no asfalto". Mesmo que O Primeiro Dia seja fiel — não sabemos se consciente ou incosncientemente — à relação entre as duas classes (a Fernandinha, a classe média, só abre os olhos para a violência depois do que aconteceu com os pobres), o filme deixa, depois de sua visão, um mal-estar de que, para trabalhar a realidade tanto no cinema quanto em nossas vidas, não é necessária tamanha 'boa vontade', tamanho 'bom tom', tamanha redoma de vidro, tamanho topo de prédio para poder observar o mundo.

Ruy Gardnier