FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição

   O LIXO E O SONHO/RATCATCHER, de Lynne Ramsay

Escócia, 1999


Já é um lugar comum um filme tomar o olhar de uma criança como centro de sua narrativa. Isso é feito das formas mais diferentes, seja em ET ou em O Reflexo do Mal. Porém, os britânicos parecem ser especialmente sensíveis a esta questão, em especial se a infância estiver relacionada a perdas, dor, crueldade, solidão, família complicadas.

O Lixo e o Sonho é basicamente um representante desta vertente. E dos melhores, diga-se. O início do filme é arrebatador. Um menino foge da mãe, que o leva para ver o pai, para ir brincar com um colega. Até então, tudo indica que será o protagonista do filme, pois se centra nele os primeiros cinco minutos. No entanto, a brincadeira logo atinge um grau de violência (como tantas brincadeiras de criança), só que esta resulta na morte do menino que parecia o centro da história. É então que a diretora revela o verdadeiro protagonista: um outro garoto, o que empurrou o anterior para a morte num canal. Ou seja, quando ele entra em cena já é dominado pela culpa, vergonha e medo que este acidente lhe causa. Somos apresentados a sua família e amigos, e aos seus arredores. Neste quesito, uma das sacadas mais inteligentes do filme: além de se passar numa parte pobre da Escócia, a história acontece especificamente durante uma longa greve dos lixeiros. Assim, sacos e mais sacos de lixo dividem o playground com as crianças, criando um ambiente degradado e meio mágico, onde os ratos são companheiros constantes.

Esteticamente o filme ousa recriar muitas vezes o imaginário deste menino, mas o principal fator é uma grande quietude que perpassa o filme, quase um silêncio. O grande ator infantil que interpreta o protagonista dá realmente um caráter silencioso e reflexivo, entre a surpresa e o medo sempre. Corajoso, o filme fala de iniciação sexual (inclusive com cenas de nu juvenil que nunca passariam num filme em Hollywood), da crueldade infantil, de alcoolismo do pai (mas também de heroísmo pelo mesmo, sem estereótipos), da dor da perda. E insere momentos lindos como todos com o vizinho que adora animais. Ao chegar ao esperado fim violento (que é especialmente violento por ser de fato, um suicídio juvenil), o filme transcorreu um retrato de época e de geração dos mais sensíveis e sutis vistos em muito tempo. Uma curiosidade é que o inglês da Escócia é tão diferente que, como em alguns filmes portugueses lançados aqui, a cópia tinha legendas em inglês!!

Eduardo Valente