Precisão dramática e espaço em Interlúdio

por Bernardo Oliveira

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Ingrid Bergman, Claude Rains e Cary Grant em
Interlúdio, de Alfred Hitchcock

Falar de Hitchcock é sempre tecer loas aos resultados de seus filmes, mas também à profunda consciência e precisão com que os realizava. Se o caso é mostrar, há então uma questão de ordem: este cinema prioriza os objetos em detrimento das palavras. Deste modo, buscamos calcular o grau de precisão dramática alcançado pelo mestre, sob a ótica do espaço em que ela se realiza. Qual a intensidade do que mostra, a partir do que mostra? Interlúdio, seu nono filme americano, concentra cargas de dramaticidade e equilíbrio, através dos objetos e dos espaços que habitam. E não faremos pouco se perguntarmos: como uma xícara pode concentrar altas voltagens dramáticas em um plano? Como uma chave pode ser protagonista de um suspense? Falar de Hitchcock é também um trabalho ingrato: talvez o cineasta mais analisado e sobre o qual mais se escreveu.

Interlúdio é um filme especial para os brasileiros, por motivos óbvios. É interessante ver o Brasil filmado por Hitchcock: o Municipal, quando a Rio Branco ainda era mão dupla; os bancos da Cinelândia onde Ingrid Bergman e Cary Grant se encontravam; a praia de Copacabana, em sua visão edênica. Mas, façamos a abstração: figuramos aí como mero pano de fundo de uma trama banal. Ela também nada acrescenta ao filme. Não passa de um amontoado de obviedades como Mata Hari, FBI e outros ganchos corriqueiros. Entendemos que nada importa a Hitchcock, senão, entreter o público com aulas de suspense. Não divagaremos sobre o tema. O filme já é a aula.

Grosso modo, podemos definir a estória da seguinte maneira: espião é o intermediário entre o FBI e uma moça desajustada; eles pretendem convencê-la a realizar uma missão na casa de alemães nazistas instalados no Brasil; ela deve dormir com um deles para obter informações secretas, no decorrer dos acontecimentos o espião e ela se apaixonam; o nazista, também apaixonado, lhe pede em casamento; ela aceita e começa o suspense, pois nos perguntamos na cadeira do cinema: e agora? Este é o filme.

No transcorrer da estória identificamos dois movimentos paralelos. O primeiro é o amor de Devlin e Lucia Hubermann. O segundo é o que o diretor chama MacGuffin, uma espécie de gancho que encontramos em noventa por cento de seus filmes e que, neste caso, são cinco mostras de urano engarrafadas como vinho, nas mãos de nazistas. Estas duas estórias correm paralelas até um súbito encontro, graças ao pedido de casamento feito por Alexander Sebastien, um dos nazistas. A tensão existe a partir de dois pólos que passam a convergir neste último item. Temos portanto três pólos dramáticos, que resumiremos em duas perguntas: "qual a solução para o caso de amor entre Lucia e Devlin?", este que nos é simpático graças a uma regeneração (Lucia era alcoólatra e se regenerou "através do amor"); "será que os nazistas vão descobrir que Lucia é uma espiã e que Devlin é seu cúmplice (Sebastien, cego de amor, tem ciúmes de Devlin). Acompanhar o filme torna-se um prazer, mas um prazer quase intuitivo pois não há escolha. Não podemos optar por torcer pelos nazistas e isso é fantástico. É o poder do cinema que faz com que não possamos escolher, mas realizar operações mentais. Hitchcock incita nossas reações e, por uma hora e quarenta e um minutos somos seus reféns.

Num momento, embora em plena trama detetivesca, sofremos com as possibilidades gradualmente remotas de Lucia e Devlin "terminarem juntos". O suspense se manifestará na revelação de Lucia: Sebastien me pediu em casamento. E agora? O que mais nos interessa, então, é de que modo somos "levados" a torcer pelo casal. É que, como já dissemos, em Hitchcock os objetos são maiores que as palavras. Uma enorme xícara reforça a situação dramática do envenenamento. Num momento ela é tão importante quanto à presença física de Ingrid Bergman. Do mesmo modo, Devlin e Lucia são peças de uma tábua de objetos, que se movem no espaço, não no tempo. Na cinematografia hitchcockiana, o espaço e os objetos são imprescindíveis. Objetar-se-á que o suspense é a dilatação do tempo e o percurso da chave é o melhor exemplo. No entanto, antes de sermos atingidos pela duração de sua trajetória, de resto bastante penosa, sofremos pela conexão entre as imagens. Isto é, antes da duração, somos atingidos pelo universo da tela, pelas mãos que carregam a chave, que a levam de um lado para o outro e esta impressão é majoritariamente a questão do que se mostra. De modo que a duração reforça estes recortes espaciais, estas "mostras de realidade" que em Interlúdio são tão eficazes. É preciso destacar a chave do tempo para que ela se torne então, não uma "realidade", mas parte da estrutura de uma realidade fílmica que se pretende guiar por "paroxismos sucessivos".

Por isso que a montagem é tão requerida: é preciso cortar o espaço, redimensioná-lo a todo instante. A precisão dramática de Hitchcock, que se fundamenta numa dialética do espaço, corta os espaços na medida em que necessita conduzir o espectador. Não deixar o suspense ser esvaziado pelo tempo, mas sustentá-lo por uma escolha do que se mostra. Dilatar durações é uma outra maneira de dizer que Hitchcock recorta espaços e os une sob uma lei de sustentação do espaço fílmico. Ora, não se pode dizer que há uma relação temporal intrínseca. Há, sim, em Tarkovski e Antonioni. Em Interlúdio – para muitos, inclusive Truffaut, síntese perfeita de Hitchcock – somos conduzidos gentilmente pelo cineasta e, como já dissemos, obrigados a realizar operações mentais que independem da nossa vontade. Acreditamos que este fator é uma prova indubitável do poder de síntese da obra de Hitchcock e sobretudo em Interlúdio. Ou não podemos fazer opções dentro de banalidades tipo Acima de qualquer suspeita, ou algo que o valha? Senão o tempo, quem dirá?