FESTIVAL DO RIO 99
críticas dos filmes em exibição

   FLORES DE XANGAI, de Hou Hsiao-hsien

Formosa/Japão, 1998


A partir do primeiro plano de Flores de Xangai, um outro universo parece abrir-se diante dos nossos olhos. O ambiente fechado, a câmara que se movimenta lentamente, ora para a direita, ora para a esquerda, a luz vermelha e amarela (cores quentes) que transborda em todo o filme, as movimentações elaboradíssimas dos atores — tudo isso cria por si só uma curiosidade imediata. A perspectiva de espaço no filme também: vemo-nos sempre enclausurados nos salões ou nos quartos das casas de prostituição, ou casas das "flores", como indica o filme já por seu título. O trabalho dos atores é incrivelmente coreografado para a câmara, e lento que parece que eles, como nós, estão também hipnotizados. Na verdade, são os personagens do filme que vivem tomando ópio e jogando mah-jong enquanto não estão na intimidade com as flores. Estas, se no intenso convívio social dos halls das casas de prostituição desempenham um papel secundário, no íntimo de seus quartos são capazes de controlar a cena, de dominar o espaço físico e mental do ambiente.

A história é fragmentada em vários pedacinhos de narração. No principal, o mestre Wang (na magnífica interpretação de Tony Leung, impassível, maior ator da China atual e um dos maiores do mundo) causa rebuliço na vida de Carmim, sua flor de predileção, quando resolve visitar Jasmim, flor de outra casa de flores, ou "enclave". Tanto Carmim quanto Jasmim passam a desenvover jogos paralelos com o mestre Wang: sexo é uma economia, e os sentimentos também — uma levanta suspeitas sobre a outra, uma acusa o mestre de traição. Em Flores de Xangai, sexo, sentimento, dinheiro e poder são apenas faces de um mesmo dado, que os homens jogam melhor quando as faces de poder e dinheiro estão no alto e pior quando sentimento e sexo vêm à tona. O padrão esquemático das relações no filme (sempre o um-a-um sendo precedido de um meio-social; no primeiro os valores são postos em jogo, no segundo os valores ganhos são exercidos), tanto quanto o enclausuramento ao qual os personagens são colocados pelo filme, erigem um universo inteiro, uma microeconomia que espelha todo um universo macroeconômico do sentimento. Não à toa, Flores de Xangai foi considerado por mais de um, quando exibido no Festival de Cannes de 1998, como sendo um filme marxista: menos no sentido histórico do que na forma como tudo passa a se estruturar na relação de trocas entre determinados saberes (meios de produção: do amor, do capital).

Se no plano do conteúdo o filme tenta desenrolar os fios do sentimento, no esquema formal a tarefa é ainda maior: realizar um filme apenas em planos-seqüência, alienando absolutamente espaço e tempo, causa e conseqüência. A realização da proposta de Hou Hsiao-hsien desestrutura o espectador, os vínculos usuais que o espectador tem com o cinema. Não se trata mais aqui de "ver o que acontece" ou "torcer por tal ou tal personagem": a pretensão de Flores de Xangai é criar um universo sensorial onde mais nada equivale ao mundo real, onde tudo é recriado à luz de novos dados, novas características, como em Matisse ou em Klee. Experiência radical de cinema, lembra-se de um ritual. O ritual de Hou Hsiao-hsien contenta-se em observar o tempo que passa, a duração profunda de cada plano. O ópio que todos fumam (o tempo todo) no filme é um indicativo: o efeito Flores de Xangai é uma droga, uma outra experiência letárgica de tempo e de espaço, uma revolta dos sentidos. Falando de sua relação com o tempo no cinema, Hou deixa claro: "Creio que nos meus filmes perde-se o sentido do tempo, como nos sonhos, e não se consegue mais medir o tempo que escorre".

Flores de Xangai, porém, é muito mais que isso. Resta a falar da música, surpreendentemente hipnótica (toca diversas vezes com variações mínimas); dos detalhes todos de reconstituição, inclusive da língua xangai, hoje reduzida a um pequeno grupo dentro da China, mas que é aquela na qual o filme é falado; dos suaves e belos movimentos de câmara que parecem acariciar os personagens. Oportunidade, então, para um novo encontro conceitual com a obra de Hou Hsiao-hsien numa ocasião mais apropriada, esperamos, num momento de uma grande retrospectiva de sua obra (esse é seu 14º filme) ou, ao menos, numa exibição comercial desse Flores de Xangai.

Ruy Gardnier


É realmente uma alegria ver um filme como Flores de Xangai. Tanto há o que agradecer a Hou Hsiao Hsien, que não cabe num texto somente. Podemos felicitá-lo pela beleza dos movimentos de câmera preciosos; pelo recorte histórico que realiza em uma China dividida; pelo caráter político e sentimental que dá a este recorte; pelos cenários e interpretações; pelos diálogos diáfanos e pela excelência da ambientação... Tudo conspira para a realização de um dos mais belos filmes desta década que já vai.

A história se passa num bordel situado na parte inglesa da China. As relações entre as "flores de Xangai" – eufemismo para "prostituta" – com seus clientes é muito diversa da que conhecemos no Brasil. Há fidelidade entre eles, como num casamento. Há certa regularidade das visitas. Há um banquete aguardando os "maridos". Há festas de "família". O ciúme invade as relações, e isto é dado quando vemos um dos clientes invocado pela exclusividade da "amada". Esta situação têm, como pano de fundo histórico, como já dissemos, uma China dividida e muito poderia ser feito a partir desta colocação. Talvez nada de importante. Mas, acima de todos estes elementos acima enumerados, se destaca a precisão dramática dos planos, ou melhor, a eficiência da alteração conceitual que Hou Hsiao Hsien perpetra a partir da idéia de plano-seqüência.

Um plano-seqüência é uma espécie de plano que concentra dramaticidade sem recorrer à montagem nem a movimentos de câmera mirabolantes, ou melhor, a nenhum movimento de câmera. Esta concentração busca a obtenção de um número exato de informações dramáticas com um mínimo a ser mostrado. Busca também manter uma forte ligação do ator com o cenário e com os outros personagens, vista sua imobilidade exaustiva que "nos constrange de participar intimamente da ação". Assim o plano-seqüência pode ser tomado como uma intuição "teatral", que mantém o ator e o público em uma relação semelhante a do teatro (o ator desempenhando no cenário/ o nosso olhar para o cenário e para o ator), mas é cinema, dada sua natureza reprodutória e "plástica".

Em Flores de Xangai há uma espécie de alteração/redução do plano-seqüência. Obtém-se efeito semelhante, porém, utilizando outras relações dramáticas, isto é, o plano-seqüência é alterado em prol de maior dramaticidade. Ele serve ao filme perfeitamente. Funciona como um olhar sobre um espaço, onde os recortes são dados pelos precisos movimentos de câmera, não pela montagem. Há o germe do plano-seqüência graças ao espaço filmado, belos cenários de um bordel. Neste bordel passaremos cento e vinte quatro minutos e nossos olhos o percorrerão, não como o curioso perdido em busca dos resultados da ação, mas, novamente, constrangidos de "participar intimamente da ação." E isto é genial porque não só nos remete a uma bela estória com belos diálogos, como altera uma categoria do plano para nos fazer "participar" da estória. Ao final do filme, conhecemos intimamente a casa e os personagens, ficamos enternecidos com a solidariedade que todos nutrem por Wang, chocados com a tentativa de suicídio, rimos com os banquetes e as piadas e aprendemos um novo jogo com os habitués do bordel.

É um filme imperdível que merece ser lançado comercialmente no Brasil. É imperdível pela capacidade de nos reportar a um passado culturalmente distante. Por nos manter ligados a este espaço por duas horas, sem concessões, mas afetivamente. E pela sensibilidade e inteligência de Hou Hsiao Hsien que soube extrair de uma categoria clássica, subsídios para trabalhar por um cinema novo, ou melhor, diferente.

Bernardo Oliveira