O Evangelho das Maravilhas
(El Evangelio de las Maravillas),
de Arturo Ripstein
(Espanha/México/Argentina, 1997)

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A primeira cena nos mostra a espinhenta junta de um arame farpado. Depois, vemos a sacerdotisa de uma estranha seita proferir palavras de ordem acerca de um destino prometido. Logo, percebemos que sua saúde vai mal: é preciso escolher a substituta para prosseguir a seita dos escolhidos. O arame farpado nos diz "o mundo está longe". Mas não o bastante para recusar a substituta dentre os novos "pescados". A velha recebe o sinal: é o mundo que ultrapassa o acampamento e se manifesta através de uma prostituta. Ela porta um mini game e uma tatuagem e seu passado é desconhecido (o arame garante esta ignorância). Símbolos de uma cultura dessacralizada invadem um contexto simétrico e adquirem outras significações.

Uma rosa e um som eletrônico identificam a escolhida. O mundo não está tão longe, tampouco a dúvida, o desejo e o tédio. O marido da sacerdotisa bebe e joga dominó escondido, com o mesmo afã entediado proporcionado pelo videogame. O mundo se relaciona com a seita, mas num nível diferente. Os fanáticos não percebem mas a representante do mundo é a escolhida e ela entende a alienação e resolve tomar partido. Sob o peso psicológico de uma mãe prostituta, determinará um novo destino para a "tribo". Ela percebe seu poder de persuasão, legitimado pela moribunda. Com a morte da sacerdotisa, aplacar o tédio torna-se ordem divina em direção à salvação. Mas como estado de "purificação", não como libertação, pois ainda buscam o paraíso. No fim, quando todos os equívocos caem por terra, a pergunta inevitável "e agora, como iremos para o céu", seguida da resposta cruel "vamos para a igreja". Avante!

Fica claro que o deboche satura a última obra de Arturo Ripstein. No entanto, no meio desse caos sistemático (toda crítica é sistemática, mesmo que prefira a confusão... sistematicamente) ecoa a voz do cinema. Ora, quem fornece os subsídios arquetípicos para a escolha da substituta? A filha da escolhida é uma Barbie. Os olhos verdes da "bichinha" chamam atenção por que parecem "de cinema". O rolo proibido tem Charlton Heston atravessando o mar vermelho.

É uma crítica ferrenha à religião. Citaram Buñuel porque Ripstein trabalhou com ele. Tudo bem, a hipótese não é, absolutamente, refutável. Mas Ripstein parece interessado em outra questão: o que pode o cinema? Voltamos à pergunta, pois não se trata mais da análise de uma imagem articulada com outra imagem, mas da crítica dos significados possíveis atrás de um clichê. Nota-se muito claramente que Ripstein critica a aceitação passiva de um cinema específico: o americano. Mas será que o cinema de Hitchcock, de Cassavetes, dos irmãos Coen? Não, mas um cinema intrinsecamente ligado às manifestações mais viciadas da indústria americana. Eis um aspecto fortíssimo do filme que não é, de modo algum, único, porém determinante dos caminhos tomados.

Não haveria uma relação entre a alienação que possibilita as seitas místicas e a que possibilita um espectador viciado? É realmente muito complicado discutir sobre cinema, vídeo, fotografia e tv com qualquer pessoa. Pois não é uma questão de dizer "ei, você está errado!!" Isto seria absurdo! Ninguém está errado por gostar de Star Wars, mesmo porque não é o caso. Mas a questão é "ei, porque só há espaço para determinado produto?" Também não é problema de informação. Você pode "saber" de cinema e isso não implica em muita coisa. No entanto, é inegável o clamor do público: ele pede novela, como ela é, sem muitas variações. Ele pede Van Damme e Julia Roberts mas, francamente, não é o problema. Este começa quando não se tem espaço na percepção para outras manifestações. Trata-se de perguntar "por que novela, sem tirar nem pôr?" Por que só filme americano de qualidade padrão? Para não insistir no cinema americano, vejam Kieslowski, este europeu repetitivo e piegas, sobra de Nouvelle Vague, que redunda um discurso introspectivo de fazer chorar. É o Stallone intelectual. Ou Hal Hartley que repete Godard como se nada tivesse acontecido. Estas "preferências" se agravam quando o cinema americano abocanha a produção e distribuição, formando trustes ao longo de 100 anos, sem o menor pudor, em busca do lucro fácil. Podem me chamar de ingênuo, mas que é uma situação miseravelmente empobrecedora, não há a menor dúvida.

Creio que Ripstein pretende falar destas coisa, sobretudo quando seus filmes revelam uma personalidade autêntica e laboriosa. Percebe-se que O Evangelho das Maravilhas não custou muito dinheiro e, no entanto, é muito bem filmado, encenado com cuidado e ótimos e desconhecidos atores. É um filme inteligente que blasfema com piadas de extrema perspicácia e precisão: pega o problema no local certo. Possivelmente fará (ou já fez) sucesso no México, Argentina, Brasil,... Sucesso sempre relativo e este é o problema. Porque, se excede o previsto, a Academia procura logo um "melhor filme estrangeiro" para arrumar a casa e colocar cada um no seu lugar. Numa seita, por exemplo. Ou na sala de estar, em frente à tv, aguardando o boa noite do tio Cid.

Bernardo Oliveira