DOIS CÓRREGOS, de Carlos Reichenbach

Brasil, 1999


Não é a primeira vez que Reichenbach filma os corpos para escandir a mente. Em Dois Córregos, contudo, a coisa se movimenta de forma diferente: trata-se de buscar num pequeno encontro, numa estadia de apenas quatro dias, uma experiência que mudou para sempre a vida de quatro pessoas. Beth Goulart chega à casa de campo, acompanhada de advogado e delegado. Ela quer recuperar o imóvel, que está sendo ocupado por uma família da região. Ao chegar, bem acomodada aos procedimentos jurídicos, deixa todo o trabalho sujo nas mãos dos oficiais. A faceta social é sempre importante nos filmes de Reichenbach, mas isso não impede que a boa burguesa, publicitária de razoável sucesso, tenha lembranças. E é a partir delas que o filme passa a ser contado. Um encontro de menina com um mito familiar, que passa também por mito político: ela e uma amiga, adolescentes, vão à casa na cidade de Dois Córregos, e nela está escondido o tio Hermes, engenheiro químico que deixou mulher, filhos e profissão para fazer militância política de esquerda. Com o golpe militar, a única saída foi operar na clandestinidade e, assim, passar a ser um dos perseguidos do regime. O estigma de velho comunista, de um homem fugidio e espectral atiça as meninas que, antes de encontrar com ele, ficam imaginando aos mínimos detalhes como será essa figura (Hermes ao mesmo tempo hermético e guia).

Dois Córregos opera, assim, em dois níveis: o primeiro, na busca das duas moças pela definição de sua personalidade, pelo fascínio de encontrar o primeiro ser humano decente e confiável de suas vidas (a mãe de uma é uma víbora dominadora enquanto o pai de outra é um militar de alta estirpe e da linha dura); o segundo nível é o da própria experiência de Hermes, que procura se apaziguar com as suas lembranças e escolhas existenciais. No cinema de Reichenbach temos sempre a passagem do físico ao metafísico, e dessa vez não é diferente: pimeiro vemos a figura, Hermes, bem interpretado por Carlos Alberto Ricelli; depois, a existência-Hermes, os problemas sentimentais por não mais poder ver os rostos dos filhos, por não estar apegado a eles da forma que gostaria. A fissura existencial, absoluta impossibilidade de ter o melhor de dois mundos, desempenha então um papel forte de encadeador da trama, e reforça a rede temática de toda a carreira de Carlos Reichenbach.

Mas cinema é passagem, e no cinema do realizador de Anjos do Arrabalde a passagem sempre foi um dos elementos principais. A estadia de quatro dias em Dois Córregos é antes uma aprendizagem: Hermes, o mensageiro, é guia das duas meninas e da governanta Teresa, com quem mais tarde acaba se envolvendo. O que é guiado em Dois Córregos é justamente a força, a vontade de viver de acordo com uma moral forte. Saber se a viagem surtiu efeito não é tão importante (e talvez não — Beth Goulart encara com frieza a desapropriação; a pianista atingiu uma carreira de sucesso como pianista erudita, mas talvez tenha permanecido pedante; e Teresa permaneceu fiel a seu mensageiro Hermes). O que importa em Dois Córregos é justamente o momento que nos é mostrado, o momento do acontecimento. O acontecimento está sempre lá em se tratando de Reichenbach. O Império do Desejo e Extremos do Prazer nada mais são do que filmes-acontecimento, onde o que está em jogo é um momento existencial depois do qual nada mais será igual a como era antes. Igualmente em Dois Córregos.

Ruy Gardnier


Quando nos referimos a algumas opiniões sobre o cinema brasileiro, falamos precisamente sobre dois interlocutores: a crítica especializada e o público. Não é o caso fazer distinções entre os representantes da primeira categoria. Não interessa porque sabemos a quem estamos nos dirigindo, já que em geral, os artigos são assinados. Já o público, por motivos óbvios, é uma categoria mais complicada. Requer uma pesquisa ampla sobre temas que nem sempre estão na cabeça do espectador. Além disso, um filme como Dois Córregos tem público certo, de modo que qualquer opinião pode ser tomada como dado fundamental. Assim, se as citações contidas neste texto forem por demais arbitrárias, tomem-nas sob o equívoco de uma generalização. Como se estivéssemos trabalhando com hipóteses e, dialeticamente, com evidências.

O problema é que há um espectador escrevendo: eu vi o filme e não sou crítico de cinema. Não há nesta prosa a menor vontade impressionista e, por outro lado, "científica". Buscamos uma relação entre "ver" e "ouvir", através de uma discussão que carece de feedback imediato e precisa saber o que os "outros" acham. Para que? Pergunta cabível, que merece resposta: gosto de cinema, me divirto e me interesso pelas sua possibilidades e potencialidades. Acima disto, busco entender o quê pode o cinema, este cinema que já foi chamado de quinto poder por um Papa? O político que habita o seio do cinema é obviamente ligado à idéia concreta de público e nos sugere fazer a seguinte pergunta: qual o estatuto da imagem nos dias de hoje? Deste modo, utilizo algumas das arbitrariedades contidas neste artigo por minha própria dedução: não tenho compromissos jornalísticos e somente isto pode justificar uma reflexão cinematográfica que abra mão da perspectiva dialética que indica ser um e ser todos.

Mas por que tanta cerimônia para falar de um filme simples como Dois Córregos?

Desde muito cedo ouço falar horrores a respeito dos filmes de Carlos Reichenbach. Eles são "mau feitos", "feios" e até mesmo "ruins"; "teatro filmado", "brincadeira de adolescentes", "pornochanchada" e tudo mais. Estas opiniões são altamente especializadas, pois à exceção de Anjos do arrabalde e Alma corsária CR não realizou sucessos de público. Ouço estes dizeres com freqüência. Pois bem: afirmo que a complexidade lírica de CR reside nesta banalidade, neste "mau feito", nesta ausência total de sofisticação, ou pelo menos ausência do que habitualmente leva este nome. Dois Córregos é um filme inteligente que tange certa dramaturgia popularesca, muito sutil para a grosseira e pseudo-refinada mente cinéfila.

O problema é que CR leva para as telas toda uma tipologia estruturada. Por exemplo, há em Dois Córregos o comunista romântico e taciturno, que anda pela casa citando poetas franceses. Ou então, o advogado paulista, sumidade da escrotidão, vestido à caráter e proferindo barbaridades ao léu. A menina mimada e arrogante, filha de "coroné", que pensa que o mundo é sua banheira de sais. Através destes tipos bem conhecidos, estrutura-se uma teia de relações cujo fio condutor são as várias formas de se trabalhar estereótipos. A poética de CR sempre tange, de certo modo, a novela, mas nunca é a novela. Sempre tange o piegas e o banal, mas nunca é piegas e banal. Sempre remete a um certo naturalismo, mas não é. Talvez por isso os mais apressados sempre simplificaram as coisas, chamando seus filmes de "ruins", uma denominação que talvez nunca dariam a Hal Hartley ou algo que o valha.

Duas cenas são antológicas e ilustram bem o que dissemos acima. O comunista toca piano pela primeira vez. A beleza da cena reflete, antes de pieguice, um comentário sobre a pieguice. Esse piegas sempre está ligado a uma facilidade, isto é, apela para uma cena chorosa através de uma surpresa em que o objeto é meramente desvelado. Em Dois Córregos, não. Há uma câmara inteligente olhando a cena, que simultaneamente olha para o clichê. É um processo fenomenológico: como um clichê se manifesta? E, na continuidade do raciocínio, o que ele engendra em nossa mente? Outra belíssima cena é o banho de chuva. Nela, o comentário é mais explícito, porém, mais eficaz. A música que irrompe nos faz rir porque ela aparece tanto para endossar o clichê quanto para comentá-lo. Deste modo, Dois Córregos é um filme extremamente inteligente porque sustenta uma dialética incompatível, entre o melodramático e seu comentário, durante quase duas horas.

Mas é preciso que se diga: não é um filme intelectualizado. O fato de comentar o cinema nas entrelinhas, não o torna difícil porque há amor nos clichês. É um comentário, no entanto, um comentário "de dentro". Não há a pretensão destrutiva. Não há escárnio, mas crítica e contemplação. O comentário é, acima de tudo, criação. Reutilização de clichês, como faz Almodóvar, mas, antes, já o fazia, CR.

Por isso é que CR pagou e continua pagando. A sutileza de seus filmes não "toca o coração" dos cinéfilos especializados e dos bem pensantes freqüentadores de cineclubes e salas especiais. Talvez careça de um pouco de descontração, disposição para fruir clichês bem conhecidos e sentir algo de estranho neles. A mente cinéfila é muito "preparada" para tal. Requer certo descompromisso, certa vontade de diversão e pré-disposição para ouvir um discurso às avessas.

Bernardo Oliveira