Crimes Verdadeiros (True Crime),
de Clint Eastwood (EUA, 1999)

Nos filmes de Clint Eastwood sempre aparece a figura do pale rider, o cavaleiro solitário que é geralmente incarnada por ele próprio. Esse pale rider tem certas características recorrentes em sua obra: problemas morais (moral ambígua), é desajeitado, desconfia do mundo e mesmo assim mantém uma ingenuidade inabalável, mas é sobretudo a vontade de seguir com seu ato até as últimas conseqüências que transforma esse personagem simples num tipo de herói metafísico disposto acima de tudo a ser fiel a si mesmo.

Em Crimes Verdadeiros, esse cavaleiro solitário é Steve Everett, um jornalista beberrão e descuidado. Ele teve um passado, que nos é narrado por James Woods: ele era um grande jornalista novaiorquino até descobrir dados que ligavam a prefeitura a um esquema de corrupção. Tendo o jornal ligações com a prefeitura, Everett entregou sua matéria irretocada e demitiu-se. Mais tarde, já em Oakland, defendeu um acusado de estupro que se dizia inocente mas que depois confessou. No plano familiar, tudo vai mal. Ele é um notável conquistador que passa seu tempo mais com as mulheres do jornal (incluindo a mulher de seu superior) do que com a esposa e a filha.

Para que um retrato tão detalhado? Simplesmente porque só a partir dele é possível concluir que Clint Eastwood é um grande autor moderno (no sentido histórico do termo): seus heróis são homens cindidos, ultrapassados por desejos que não lhe pertencem, por fluxos que passam por ele mas dos quais ele só se dá conta posteriormente. Obviamente, seus personagens carregam igualmente duas características antigas, homéricas: o saber-fazer e a disposição de ser fiel consigo mesmo até o último instante, sabendo-se cindido. Apolo e Dionísio fazendo do pale rider um personagem trágico.

Crimes Verdadeiros, dentro de sua obra, ocupa um lugar inédito, o da denúncia social desenfreada. Nesse filme, Eastwood torna-se Fritz Lang (que fez uma obra semelhante em alguns aspectos, Suplício de uma Alma/Beyond Any Reasonable Doubt) para denunciar as mazelas do sistema judiciário americano e seus preconceitos inerentes. A história, como no Hana-Bi de Kitano, remete sempre a um fato primordial, desencadeador. E esse fato primordial será em todo o filme retomado e reconstruído a partir de novos elementos que surgem. O fato? Um mecânico de pele negra é visto por duas pessoas (brancas) fugindo de uma lanchonete cuja atendente acaba de ser assassinada. Ninguém viu o ato e não há arma do crime, tudo que há é a suposição de que o mecânico portava uma arma e que com ela matou a jovem atendente (que para piorar as coisas estava grávida), por uma suposta dívida de US$96. Esse fato será o cineminha individual do jornalista Everett na reconstrução do episódio. Crimes Verdadeiros é a história de um dia, o dia D do prisioneiro (ele receberá uma injeção letal um minuto após a meia-noite)e o dia D de Everett (só saberemos isso, e ele também, com o desenrolar da história) — dia em que toda sua vida será jogada para o alto, desde o emprego até sua vida familiar, passando por amantes, amigas, superiores e até sua filhinha.

Mas é obviamente consigo mesmo que o jornalista Steve Everett tem que lutar. Lutar contra um passado de alcoolismo para conseguir seu faro de volta, lutar contra sua displicência para reaver o amor de sua família, lutar por aquilo que acredita — e se ele é infiel e omisso em sua vida pessoal, algo que ele não pode admitir é que o Estado, representação da sociedade, seja infiel ou omisso. Everett tenta salvar a vida do inocente Bleechum para purgar em escala macro todos os seus pecados em escala micro. Não há paralelismo em Crimes Verdadeiros: longe das fórmulas em que o desejo de um se torna desejo do outro (desejo histérico), Everett sabe muito bem porque está a fazer o que faz. Assim parece também ser o trabalho de Eastwood diretor.

A cena cabal do filme, a da execução, começa por uma montagem paralela: à medida que o prisioneiro é amarrado à cama onde receberá a injeção, o jornalista tenta chegar à casa do governador — único que pode revogar a decisão — com a testemunha da inocência do mecânico. Quando o carro chega na casa, a câmara resolve abandonar a cena e passar para a execução. Vemos, angustiados, todas as etapas de prepraração do condenado: ele é atado à cama, coloca-se nele a seringa, a cortina que cobria o aquário é levantada para que as testemunhas legais possam ver. Eastwood escolhe a maneira fria para mostrar a execução, e percebemos que ela é adequada.

Na última cena do filme, e certamente a mais bonita, Eastwood sai de uma loja (vai comprar um presente para a filha) e se depara com um fantasma, surgido do nada, mesmo que de alguma forma esperemos sua aparição. A situação se resolve à melhor maneira eastwoodiana, sem diálogos, apenas com olhares. Santa Claus rides alone/Papai Noel caminha sozinho, e sempre para que uma família merecedora possa viver junta, é preciso de um Papai Noel solitário para evitar que infâmias sejam cometidas. Um final de filme melancólico, mas acima de tudo honrado. Avesso à auto-indulgência, Everett sabe que tudo tem que terminar assim. Ele é fiel à máxima do eterno retorno nietzschiano: "O que tu quiseres, queira-o de tal modo que também queiras seu eterno retorno". Caminhar sozinho é o jogo que ele joga, e ele responde a todo tempo afirmativamente, mesmo que sofra conseqüências que não deseje. O cinema de Clint Eastwood é semelhante, fazendo pouco dos pequenos desejos para alçar desejos maiores, desejos de eterno retorno.

Ruy Gardnier