As
pessoas já só vibram com o futebol
Entrevista a Gonçalo Ribeiro
Telles - "As pessoas já só vibram com o futebol"
Autor: Pedro Beça Múrias –
Extraído do site da Oninet.
A revista National Geographic, na sua edição em português,
chamou-lhe "O Arquitecto dos Sonhos". Líder do projecto Plano Verde
de Lisboa, que prepara algumas alterações ao Plano Director Municipal da
capital, Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto paisagista, monárquico e presidente
do Movimento Partido da Terra, em entrevista ao Oninet, explica porque é que a
falta de auto-estima é a grande inimiga do Ambiente.
Oninet - Em finais dos anos 30, o jornalista Norberto Araújo,
referindo-se à cidade sobre a qual muito escreveu e dedicou a sua vida
profissional, disse: "Lisboa tem um sentimento". Ainda existe esse
sentimento?
Gonçalo Ribeiro Telles - Sim, ainda existe um sentimento sobre
Lisboa. Digo ainda existe porque, como todos sabemos, um dos graves problemas
nacionais, que atinge também os lisboetas, é o da falta de auto-estima que os
portugueses têm. E, evidentemente, Lisboa não se safa dessa situação. Mas,
apesar de tudo, em determinadas áreas há ainda uma relação entre o habitante de
Lisboa, o cidadão de Lisboa, ou até o que vem a Lisboa para trabalhar, e a sua
cidade. É um facto. Mais aqui do que em qualquer outro lugar. No entanto, esse
sentimento está a diluir-se. Assim como se está a diluir também, de facto, todo
o processo de auto-estima dos portugueses pelo seu país.
E como podemos interpretar essa falta de auto-estima?
GRT - Esta falta de auto-estima tem uma causa principal: tudo
quanto existe, posso referir-me neste momento à paisagem, é, de facto, uma
consequência do passado. E não havendo conhecimento desse passado, não se pode
amar aquilo que não se conhece. Isto é fundamental. É tirado até de uma frase
do prof. Orlando Ribeiro sobre paisagem. Hoje basta ver na televisão as
perguntas que se fazem sobre o país, sobre a história, qualquer coisa que nos
diga respeito - a maior parte das respostas são um desastre total. Portanto,
não havendo esse conhecimento do passado, ficam apenas imagens sem essência.
Daí que hoje as pessoas comecem a defender Lisboa, e as suas cidades, não como
uma bela consequência e memória do passado mas como uma imagem publicitária
duma moda sem futuro.
Com que consequências?
GRT - As construções em altura, por todo o lado, nas nossas
cidades. Surgem e são entendidas, não como uma fatalidade, mas como uma ideia
de progresso. É a destruição sistemática da nossa paisagem. Basta ver hoje o
que é o Algarve e o que se passa também em muitas outras cidades: cheias de
palmeiras, de repuxos e "gramados" - como dizem os brasileiros. Até
parece que, para ser cidade, tem que ter tudo isso. É um desastre que nada tem
a ver com melhor qualidade de vida!
Fala-se muito agora na cidade-região. É o que o Professor defende?
GRT - Não defendo, é o que existe! Onde começa e acaba Lisboa?
Começa em Cascais, vai até Vila Franca de Xira, começa a ir até Mafra, Torres
Vedras. Mais a sul vai até Setúbal. E mal de nós se essa cidade-região não
tiver uma estrutura natural, que inclua a agricultura urbana - como pretende o
programa Habitat II da ONU - à circulação da água, da matéria orgânica e da
vida silvestre. Temos cidade-região, mas não temos uma autoridade regional para
a sua gestão... GRT - Até tenho medo da autoridade regional! Só quando a
autoridade regional estiver bem informada, e bem apoiada tecnicamente, é que
isso resulta. Senão é outro desastre. Veja o exemplo das autarquias: grande
parte da culpa do que se passa nas câmaras não é exclusiva dos presidentes, é
de quem os rodeia tecnicamente, de quem os informa, de quem está agarrado a
rotinas. É por desconhecimento da evolução das coisas, e assim por diante.
Defende a regionalização?
GRT - Defendo. A Área Metropolitana de Lisboa, a exemplo da grande
Londres, precisa de uma entidade democraticamente eleita, que faça a conjugação
do que se passa em todos os municípios. Mas é bom que esta não sirva só para
resolver problemas de transportes. Tem de atacar problemas globais. O que não
quer dizer que depois, administrativamente, e na vida quotidiana, não haja a
descentralização dessa entidade. O que podemos travar ainda na região de
Lisboa? GRT - Temos que travar tudo, senão isto acabou. Quero dizer, a
continuação deste processo de crescimento tem um ponto de chegada que é o
Terceiro Mundo.
Terceiro Mundo???
GRT - Sim, a mobilidade das populações já começa a ser a do
Terceiro Mundo. Vivemos num falso desenvolvimento. E dou um exemplo: muitas
pessoas compram ou arrendam uma casa que, depois de gasta, deitam fora. Trocam-na
como um automóvel com 70 000Km, e mudam-se para outra nova. Como resposta às
necessidades desta população, que saiu da primeira periferia, que está
degradada, constrói-se agora muito na margem sul do Tejo. Em Alcochete, Seixal
e outros locais. Em seu lugar, para a primeira periferia urbana, como o Cacém e
Odivelas, que se degradou, que foi mal concebida e não foi bem conservada, onde
estavam antes quatro pessoas passam a viver doze, catorze... São os imigrantes,
que vêm de outros lados. Bom, isto é o Terceiro Mundo. E a cidade não pode ser
construída assim...
E que soluções se podem encontrar para isto?
GRT - Só com muito planeamento, onde coexistam os dois sistemas -
o sistema vivo da sustentabilidade e o sistema inerte da edificabilidade. É
obrigatório que sejam planeados em conjunto, e não com visões sectoriais em que
o segundo não considera a existência do primeiro.
E a quem caberia essa tarefa?
GRT - As pessoas que estão preparadas para isso. Que conhecem o
processo. Há formações que dão para isso. A de arquitecto paisagista é uma
delas. Mas não quer dizer que não haja outras preparações. O que não pode
continuar a existir são situações como a do curso de Engenharia do Território,
do Instituto Superior Técnico, onde, apesar de ser do "território",
não há uma disciplina de agricultura! Os jovens licenciados terminam esse
curso, e ficam com uma ideia de território como sendo um objecto de
edificabilidade. Pouco sabem do sistema vivo da sustentabilidade.
Vendo Lisboa, caso a caso, que zonas requerem intervenções de
fundo?
GRT - A primeira coisa que se tem que fazer em Lisboa, e
rapidamente, para parar esta degradação toda é cumprir a lei. É estudar com
competência, e elaborar com competência, e implantar em todos os municípios,
uma estrutura ecológica municipal, como diz a lei. É um primeiro passo. Em
segundo lugar, é preciso limitar também as necessidades. Não pode haver
necessidades, se não houver capacidade. A relação necessidade/capacidade é
fundamental. Não se podem criar necessidades se não tivermos capacidade para
resolver os assuntos. No entanto, é o que estamos a fazer.
Bem, mas se temos a lei, temos também gente que sabe pensar essas
coisas...
GRT - Não. Alguém pensou nessas coisas e saiu a lei. Mas depois
ninguém mais pensou no assunto. Pensou-se, antes, sobre qual o melhor partido a
tirar dessa lei, para a evitar. Quando algo não serve para o negócio,
assobia-se para o lado. Deixa-se estar a lei. Sabe o que se passou com as
reservas e os parques naturais?
Diga...
GRT - Há um decreto de 1993, do governo de Cavaco Silva, que
regulamenta a criação das áreas da Rede Natura. E este decreto tem um artigo
que diz mais ou menos isto: durante o tempo em se está a criar o parque, tem
que se nomear uma comissão para o gerir e, num determinado intervalo de tempo,
é preciso fazer-se um plano de ordenamento da área, seja esta um parque, seja
uma reserva. Se, ao fim desse tempo, não estiver concluído o plano de
ordenamento, cessa a classificação de parque ou reserva.
E que resultados teve isso?
GRT - Em treze parques e reservas já cessou a classificação. E só
agora, um ano depois, é que se deu por isso. Para remediar, fizeram a correr
uma lei retroactiva. E isto aconteceu porquê? Porque as pessoas que dirigiam os
parques não estavam preparadas para fazer esses planos de ordenamento. Não era
do âmbito da sua formação. E como não queriam, corporativamente, dar o
"braço a torcer", sucedeu isto. A Arrábida esteve um ano em roda
livre, onde se fez de tudo. Agora não sei é como, retroactivamente, se vai
conseguir reparar tudo isso.
Como devemos interpretar esta falha?
GRT - Corporativismo, lucro, rotina, incapacidade, e falta de
auto-estima.
É a segunda vez que fala em auto-estima. Acha que nos desleixámos
com a nossa terra?
GRT - Não. Desleixámo-nos com aquilo que somos. E como não sabemos
aquilo que somos, evidentemente não temos terra. Basta ver o que tem sido, nos
últimos anos, o ensino da História, Geografia, etc. E agora estão todos muito
aflitos. Mandam ensinar, à pressa, as crianças a cantar "A
Portuguesa"...
A Natureza é a grande vítima?
GRT - Não. A Natureza é a paisagem. Hoje vivemos numa segunda
Natureza, transformada desde há séculos pelo Homem. Que a moldou e desenvolveu.
Há aspectos da biodiversidade que são mais ricos nesta segunda Natureza
transformada pelo Homem do que na Natureza liberta do Homem.
Morreu, a Mãe Natureza?
GRT - Não! Está vivíssima! Está é a gostar muito do tratamento que
lhe dá o Homem, quando é bem feito.
Quais são as suas frentes de batalha?
GRT - Não travo, propriamente dito, batalhas. No Partido da Terra
(MPT) combato pela terra! A cidade e o campo são sub-sistemas. E, no fundo,
isso é combater pela terra. A terra como um valor emocional, estético, como
recurso. Mas para além do problema da terra, e de Lisboa, há o país. Luto pela
nossa identidade cultural, pela nossa cultura e independência. Estou muito
convencido que hoje a independência de um país passa muito pela sua identidade
cultural. E passa por ser suportada por uma realidade...
Uma realidade?
GRT - Sim. A primeira realidade é a Língua Portuguesa. Os
atropelos e o desaparecimento da língua são um desastre para um país.
A que atribui a perda da
nossa auto-estima?
GRT - Os portugueses não conhecem a sua História. Só conhecem
aspectos que, por muitos, são considerados ridículos. Basta ver os concursos na
televisão. Não conhecendo a sua história têm auto-estima por quem? Por si
próprios, claro, mas nunca pela comunidade a que pertencem.
Acha que os portugueses ainda podem tentar a redescoberta de si
próprios?
GRT - Talvez, com um abanão forte. Acredito nisso.
Bem, as novas gerações começam a interrogar-se se gostam de viver
no vazio...
GRT - As novas sim. As outras foram muito acalentadas pelo
positivismo. Pelo racionalismo. Muitos intelectuais chegaram à conclusão, ou
defenderam, que isto não tinha razão económica ou mesmo cultural para existir.
Não tinha razão geográfica para existir, não tinha razão para ser qualquer
coisa e isso estendeu-se, de facto, à comunidade em geral. Não tenho a menor
dúvida.
Está a falar do pós 25 de Abril?
GRT - Não, isto vem de antes. O 25 de Abril apenas deixou
continuar o processo que já vinha em curso. De algum modo, é parecido com o que
se passa em França. Mas a França tem uma outra amplitude e outros meios, e lá
esse processo não é tão patente, nem tão grave. Mas lá também houve a intenção
de fazer da História algo que combatia o progresso.
Considera existir alguma relação entre o exercício da cidadania e
a luta pelo Ambiente?
GRT - Não. Pergunto primeiro - o que é a cidadania? É vazia de
emoção. O cidadão - ainda à moda da influência francesa - é um fulano com
direitos e deveres. Escritos. Acontece o mesmo na relação com o Ambiente.
Desapareceu de cena um factor extraordinário, assunto muito bem trabalhado pelo
médico António Damásio, que é o problema da emoção. E esta questão, de tudo se
resumir a direitos e deveres, retirou por completo o sentido emocional da
solidariedade e da pátria. Só resiste num sítio...
Onde?
GRT - No futebol. As pessoas já só vibram, nacionalmente, com o
futebol. É o que lhes resta...
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