Data de publicação: 27 de Outubro de 2002

As pessoas já só vibram com o futebol
Entrevista a Gonçalo Ribeiro Telles - "As pessoas já só vibram com o futebol" 

Autor: Pedro Beça Múrias – Extraído do site da Oninet.

A revista National Geographic, na sua edição em português, chamou-lhe "O Arquitecto dos Sonhos". Líder do projecto Plano Verde de Lisboa, que prepara algumas alterações ao Plano Director Municipal da capital, Gonçalo Ribeiro Telles, arquitecto paisagista, monárquico e presidente do Movimento Partido da Terra, em entrevista ao Oninet, explica porque é que a falta de auto-estima é a grande inimiga do Ambiente.

 

Oninet - Em finais dos anos 30, o jornalista Norberto Araújo, referindo-se à cidade sobre a qual muito escreveu e dedicou a sua vida profissional, disse: "Lisboa tem um sentimento". Ainda existe esse sentimento?

 

Gonçalo Ribeiro Telles - Sim, ainda existe um sentimento sobre Lisboa. Digo ainda existe porque, como todos sabemos, um dos graves problemas nacionais, que atinge também os lisboetas, é o da falta de auto-estima que os portugueses têm. E, evidentemente, Lisboa não se safa dessa situação. Mas, apesar de tudo, em determinadas áreas há ainda uma relação entre o habitante de Lisboa, o cidadão de Lisboa, ou até o que vem a Lisboa para trabalhar, e a sua cidade. É um facto. Mais aqui do que em qualquer outro lugar. No entanto, esse sentimento está a diluir-se. Assim como se está a diluir também, de facto, todo o processo de auto-estima dos portugueses pelo seu país.

 

E como podemos interpretar essa falta de auto-estima?

 

GRT - Esta falta de auto-estima tem uma causa principal: tudo quanto existe, posso referir-me neste momento à paisagem, é, de facto, uma consequência do passado. E não havendo conhecimento desse passado, não se pode amar aquilo que não se conhece. Isto é fundamental. É tirado até de uma frase do prof. Orlando Ribeiro sobre paisagem. Hoje basta ver na televisão as perguntas que se fazem sobre o país, sobre a história, qualquer coisa que nos diga respeito - a maior parte das respostas são um desastre total. Portanto, não havendo esse conhecimento do passado, ficam apenas imagens sem essência. Daí que hoje as pessoas comecem a defender Lisboa, e as suas cidades, não como uma bela consequência e memória do passado mas como uma imagem publicitária duma moda sem futuro.

 

Com que consequências?

 

GRT - As construções em altura, por todo o lado, nas nossas cidades. Surgem e são entendidas, não como uma fatalidade, mas como uma ideia de progresso. É a destruição sistemática da nossa paisagem. Basta ver hoje o que é o Algarve e o que se passa também em muitas outras cidades: cheias de palmeiras, de repuxos e "gramados" - como dizem os brasileiros. Até parece que, para ser cidade, tem que ter tudo isso. É um desastre que nada tem a ver com melhor qualidade de vida!

 

Fala-se muito agora na cidade-região. É o que o Professor defende?

 

GRT - Não defendo, é o que existe! Onde começa e acaba Lisboa? Começa em Cascais, vai até Vila Franca de Xira, começa a ir até Mafra, Torres Vedras. Mais a sul vai até Setúbal. E mal de nós se essa cidade-região não tiver uma estrutura natural, que inclua a agricultura urbana - como pretende o programa Habitat II da ONU - à circulação da água, da matéria orgânica e da vida silvestre. Temos cidade-região, mas não temos uma autoridade regional para a sua gestão... GRT - Até tenho medo da autoridade regional! Só quando a autoridade regional estiver bem informada, e bem apoiada tecnicamente, é que isso resulta. Senão é outro desastre. Veja o exemplo das autarquias: grande parte da culpa do que se passa nas câmaras não é exclusiva dos presidentes, é de quem os rodeia tecnicamente, de quem os informa, de quem está agarrado a rotinas. É por desconhecimento da evolução das coisas, e assim por diante.

 

Defende a regionalização?

 

GRT - Defendo. A Área Metropolitana de Lisboa, a exemplo da grande Londres, precisa de uma entidade democraticamente eleita, que faça a conjugação do que se passa em todos os municípios. Mas é bom que esta não sirva só para resolver problemas de transportes. Tem de atacar problemas globais. O que não quer dizer que depois, administrativamente, e na vida quotidiana, não haja a descentralização dessa entidade. O que podemos travar ainda na região de Lisboa? GRT - Temos que travar tudo, senão isto acabou. Quero dizer, a continuação deste processo de crescimento tem um ponto de chegada que é o Terceiro Mundo.

 

Terceiro Mundo???

 

GRT - Sim, a mobilidade das populações já começa a ser a do Terceiro Mundo. Vivemos num falso desenvolvimento. E dou um exemplo: muitas pessoas compram ou arrendam uma casa que, depois de gasta, deitam fora. Trocam-na como um automóvel com 70 000Km, e mudam-se para outra nova. Como resposta às necessidades desta população, que saiu da primeira periferia, que está degradada, constrói-se agora muito na margem sul do Tejo. Em Alcochete, Seixal e outros locais. Em seu lugar, para a primeira periferia urbana, como o Cacém e Odivelas, que se degradou, que foi mal concebida e não foi bem conservada, onde estavam antes quatro pessoas passam a viver doze, catorze... São os imigrantes, que vêm de outros lados. Bom, isto é o Terceiro Mundo. E a cidade não pode ser construída assim...

 

E que soluções se podem encontrar para isto?

 

GRT - Só com muito planeamento, onde coexistam os dois sistemas - o sistema vivo da sustentabilidade e o sistema inerte da edificabilidade. É obrigatório que sejam planeados em conjunto, e não com visões sectoriais em que o segundo não considera a existência do primeiro.

 

E a quem caberia essa tarefa?

 

GRT - As pessoas que estão preparadas para isso. Que conhecem o processo. Há formações que dão para isso. A de arquitecto paisagista é uma delas. Mas não quer dizer que não haja outras preparações. O que não pode continuar a existir são situações como a do curso de Engenharia do Território, do Instituto Superior Técnico, onde, apesar de ser do "território", não há uma disciplina de agricultura! Os jovens licenciados terminam esse curso, e ficam com uma ideia de território como sendo um objecto de edificabilidade. Pouco sabem do sistema vivo da sustentabilidade.

 

Vendo Lisboa, caso a caso, que zonas requerem intervenções de fundo?

 

GRT - A primeira coisa que se tem que fazer em Lisboa, e rapidamente, para parar esta degradação toda é cumprir a lei. É estudar com competência, e elaborar com competência, e implantar em todos os municípios, uma estrutura ecológica municipal, como diz a lei. É um primeiro passo. Em segundo lugar, é preciso limitar também as necessidades. Não pode haver necessidades, se não houver capacidade. A relação necessidade/capacidade é fundamental. Não se podem criar necessidades se não tivermos capacidade para resolver os assuntos. No entanto, é o que estamos a fazer.

 

Bem, mas se temos a lei, temos também gente que sabe pensar essas coisas...

 

GRT - Não. Alguém pensou nessas coisas e saiu a lei. Mas depois ninguém mais pensou no assunto. Pensou-se, antes, sobre qual o melhor partido a tirar dessa lei, para a evitar. Quando algo não serve para o negócio, assobia-se para o lado. Deixa-se estar a lei. Sabe o que se passou com as reservas e os parques naturais?

 

Diga...

 

GRT - Há um decreto de 1993, do governo de Cavaco Silva, que regulamenta a criação das áreas da Rede Natura. E este decreto tem um artigo que diz mais ou menos isto: durante o tempo em se está a criar o parque, tem que se nomear uma comissão para o gerir e, num determinado intervalo de tempo, é preciso fazer-se um plano de ordenamento da área, seja esta um parque, seja uma reserva. Se, ao fim desse tempo, não estiver concluído o plano de ordenamento, cessa a classificação de parque ou reserva.

 

E que resultados teve isso?

 

GRT - Em treze parques e reservas já cessou a classificação. E só agora, um ano depois, é que se deu por isso. Para remediar, fizeram a correr uma lei retroactiva. E isto aconteceu porquê? Porque as pessoas que dirigiam os parques não estavam preparadas para fazer esses planos de ordenamento. Não era do âmbito da sua formação. E como não queriam, corporativamente, dar o "braço a torcer", sucedeu isto. A Arrábida esteve um ano em roda livre, onde se fez de tudo. Agora não sei é como, retroactivamente, se vai conseguir reparar tudo isso.

 

Como devemos interpretar esta falha?

 

GRT - Corporativismo, lucro, rotina, incapacidade, e falta de auto-estima.

 

É a segunda vez que fala em auto-estima. Acha que nos desleixámos com a nossa terra?

 

GRT - Não. Desleixámo-nos com aquilo que somos. E como não sabemos aquilo que somos, evidentemente não temos terra. Basta ver o que tem sido, nos últimos anos, o ensino da História, Geografia, etc. E agora estão todos muito aflitos. Mandam ensinar, à pressa, as crianças a cantar "A Portuguesa"...

 

A Natureza é a grande vítima?

 

GRT - Não. A Natureza é a paisagem. Hoje vivemos numa segunda Natureza, transformada desde há séculos pelo Homem. Que a moldou e desenvolveu. Há aspectos da biodiversidade que são mais ricos nesta segunda Natureza transformada pelo Homem do que na Natureza liberta do Homem.

 

Morreu, a Mãe Natureza?

 

GRT - Não! Está vivíssima! Está é a gostar muito do tratamento que lhe dá o Homem, quando é bem feito.

 

Quais são as suas frentes de batalha?

 

GRT - Não travo, propriamente dito, batalhas. No Partido da Terra (MPT) combato pela terra! A cidade e o campo são sub-sistemas. E, no fundo, isso é combater pela terra. A terra como um valor emocional, estético, como recurso. Mas para além do problema da terra, e de Lisboa, há o país. Luto pela nossa identidade cultural, pela nossa cultura e independência. Estou muito convencido que hoje a independência de um país passa muito pela sua identidade cultural. E passa por ser suportada por uma realidade...

 

Uma realidade?

 

GRT - Sim. A primeira realidade é a Língua Portuguesa. Os atropelos e o desaparecimento da língua são um desastre para um país.

 

 A que atribui a perda da nossa auto-estima?

 

GRT - Os portugueses não conhecem a sua História. Só conhecem aspectos que, por muitos, são considerados ridículos. Basta ver os concursos na televisão. Não conhecendo a sua história têm auto-estima por quem? Por si próprios, claro, mas nunca pela comunidade a que pertencem.

 

Acha que os portugueses ainda podem tentar a redescoberta de si próprios?

 

GRT - Talvez, com um abanão forte. Acredito nisso.

 

Bem, as novas gerações começam a interrogar-se se gostam de viver no vazio...

 

GRT - As novas sim. As outras foram muito acalentadas pelo positivismo. Pelo racionalismo. Muitos intelectuais chegaram à conclusão, ou defenderam, que isto não tinha razão económica ou mesmo cultural para existir. Não tinha razão geográfica para existir, não tinha razão para ser qualquer coisa e isso estendeu-se, de facto, à comunidade em geral. Não tenho a menor dúvida.

 

Está a falar do pós 25 de Abril?

 

GRT - Não, isto vem de antes. O 25 de Abril apenas deixou continuar o processo que já vinha em curso. De algum modo, é parecido com o que se passa em França. Mas a França tem uma outra amplitude e outros meios, e lá esse processo não é tão patente, nem tão grave. Mas lá também houve a intenção de fazer da História algo que combatia o progresso.

 

Considera existir alguma relação entre o exercício da cidadania e a luta pelo Ambiente?

 

GRT - Não. Pergunto primeiro - o que é a cidadania? É vazia de emoção. O cidadão - ainda à moda da influência francesa - é um fulano com direitos e deveres. Escritos. Acontece o mesmo na relação com o Ambiente. Desapareceu de cena um factor extraordinário, assunto muito bem trabalhado pelo médico António Damásio, que é o problema da emoção. E esta questão, de tudo se resumir a direitos e deveres, retirou por completo o sentido emocional da solidariedade e da pátria. Só resiste num sítio...

 

Onde?

 

GRT - No futebol. As pessoas já só vibram, nacionalmente, com o futebol. É o que lhes resta...

 

 

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