Lanterna mágica em Bayreuth
 
 

Luís Antônio Giron
 
 

 Palco do Festspielhaus
 
 

O Festival de Bayreuth (Bayreuther Festspiele) mantém anualmente, desde 1876, a tradição da arte do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883). O teatro construído na Francônia (norte da Baviera) pelo compositor alemão para representar suas obras, o Festspielhaus, é uma clara antevisão do cinema sonoro. A estréia da tetralogia "O Anel dos Nibelungos'' -formada pelos "dramas musicais'' "O Ouro do Reno'', "A Valquíria'', "Siegfried'' e "O Crepúsculo dos Deuses- no primeiro festival, de 13 a 17 de agosto de 1876, antecipou a imagem em movimento em 19 anos, e o cinema sonoro em 49 anos. Como se diz em cinema, o último "Anel dos Nibelungos'' do século entrou em cartaz em 1994.

Ainda assim habita o Festspielhaus o quase nada, o último resquício da aura que ainda reside na arte. Aura, no conceito do pensador alemão Walter Benjamin em "A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução'', publicado em francês em 1936, 'é "a única aparição de uma realidade longínqua, por mais póxima que esteja'' (1). Benjamin descreve o impacto do surgimento da fotografia sobre os fundamentos da arte ocidental. A fotografia começaria a "emancipação da obra de arte com relação à existência parasitária que lhe era imposta por seu papel ritualístico'' (2). O cinema, para ele, aumenta a possibilidade da libertação da arte. Diz que "a natureza que fala à câmara é completamente diversa da que fala aos olhos, mormente porque ela substitui o espaço onde o homem age conscientemente por um outro onde sua ação é inconsciente'' (3). O cinema abre, pela primeira vez "a experiência do inconsciente visual, assim como a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente instititvo'' (4).
 
 
 

Lumières e a psicanálise
 
 

O milhão de vezes citado ensaio de Benjamin é rebarbativo na defesa política da arte soviética e testemunha apenas parte do poder aurático que o cinema teria dali para frente. Mas não deixa de tocar no fulcro da questão da arte no século XX: a reprodução técnica. Ora, Wagner em Bayreuth antevê a arte do cinema, afastando o espectador do contato direto com a arte. Entre o público e o palco, está o "abismo místico'' (mystischer Abgrund), espaço misterioso, fosso em que se posta a orquestra. Sua tetralogia faz emergirem mitos arcaicos, para que estes arremessassem suas lanças contra a cobiça do nascente mundo da comunicação e do consumismo. O cinema nasceria com a psicanálise em 1895, com a imagem de operários saindo da Fábrica Lumière, filme apresentado à Sociedade de Encorajamento da Indústria Nacional, na rue de Rennes, 44, em Paris, em 22 de março daquele ano. Wagner estava morto e a aura da arte desmoronava de vez. O compositor havia iniciado o processo, convertendo a ópera emAlois Burgstallter como Siegfried, em 1896"Gesamtkunswerk'', obra de arte total, dentro da qual todas as artes e técnicas disponíveis foram utilizadas, do maquinário moderno à lanterna mágica.

É curioso fazer um paralelo entre o que Wagner fazia e as invenções que se sucederam em paralelo. Enquanto ele ultimava os preparativos do festival, em 1872, realizando ensaios e apressando os engenheiros para darem cabo da construção do teatro, o fotógrafo Muybridge realizava a sequência de fotogramas dos cavalos em movimento, o primeiro índice da imagem em movimento. Wagner projetou imagens em movimento da cavalgada das valquírias na segunda noite do "Anel'' para um público estupefato, quase no mesmo instante em que Graham-Bell demonstrava o telefone em Paris. Nietzsche escreveu pré-freudianamente sobre o compositor em 1888: "Wagner est une névrose'' (5), é uma neurose, a imagem do artista da decadência, o homem do artifício e do despotismo, do culto desenfreado à divindade da música.
 
 
 

Culto em órbita
 
 

Apesar de seus detratores, Bayreuth persiste sendo um lugar de romaria. Em torno da "fábrica'' -como é conhecido o teatro, por lembrar um galpão, todo ele feito de tijolos avermelhados- os peregrinos circulam incessantemente até a obtenção de um ingresso tresmalhado de dois anos de reservas, ou a fadiga. "Suche Karte'' (procuro ingressos) os cartazes que carregam, como condenados a uma órbita fixa e quase sem resultado. Por temer a exclusão do templo da música, essa gente persegue ingressos por dias seguidos. A casa hoje tem capacidade para 1.925 espectadores, contra 1.645 na época de Wagner. Um grupo de metais toca a fanfarra na sacada do teatro. Os temas são tirados da ópera do dia. A cerimônia se repete a cada início de ato; tema simples quando faltam 15 minutos para começar a função, tema duplo aos 10 minutos e tema triplo aos cinco. É hora de entrar. Os motivos são tirados da ópera do dia. As portas se abrem e as moças de azul (como são chamadas desde o tempo de Wagner) iniciam os trabalhos de fiscalização dos bilhetes. A noite é muito quente. O teatro, todo em madeira, ressoa como um violoncelo gigantesco, dentro do qual o público se assentasse, no íntimo da música.

As filhas do Reno na montagem de Bayreuth, 1896

Tudo parece muito igual ao que sempre se deu, uma ocasião tradicional. Um segundo século se encerra no monte verde, em que foi erigido o Festspielhaus. A montagem deste fim de século tem o maestro norte-americano James Levine como diretor musical e o encenador Alfed Kirchner como diretor cênico. Os cantores não ostentam a antiga monumentalidade. A diva do momento é a soprano norte-americana Deborah Polaski, que faz Brunhilde com brilho relativo e escassa potência vocal. No comando administrativao (e muitas vezes artístico) do espetáculo está Wolfgang Wagner, nascido em 1919, neto de Richard Wagner. As montagens da tetralogia seguem um calendário monótono.Ficam em cartaz durante cinco anos. Ao fim do período, dá-se o ano da pausa. Então Bayreuth se cala. O teatro fecha em 2000. A cada ano os romeiros se perguntam:sobre o destino da casa e da arte de Wagner no milênio que chega. A montagem de Kirchner parece responder com ironia a todas essas questões. É "fashionable'', um festival de modelitos e luzes incandescendes berrantes criadas por fibra ótica. "A arte wagneriana resiste n plano musical porque não carrega sentidos específicos'', diz Kirchner. "Teatralmente, deve ser aberta para a experimentação. Só assim o "Anel'' tem sobrevida'' (5, entrevista com Kirchner).

Para insuflar modernidade à obra, Kirchner despolitizou a leitura dos Nibelungos, indo no contrapelo de Harry Kupfer, que dirigiu o "Anel'' entre 1989 e 1993. Kupfer espezinhava os deuses num banbue-bangue pelo poder do ouro. Kirchner transforma a Vahlala num cenário abstrato, em que o mito volta a ter lugar, embora sem o impulso protonazistas das montagens originais. Bayreuth já promoveu o desfile de todas as leituras e ideologias, à exceção do pop, por enquanto alijado Wagner como obra aberta, esta parece sera única possibilidade da sobrevivência do seu trabalho alegórico. Mas se trata de um soar, mais do que um ser.
 
 
 

Circunavegação
 
 

Há pelo menos um aspecto técnico revolucionário pelo qual Wagner deve ser lembrado. O Festspielhaus é um protótipo de sala de cinema, um locus neutro em que todas as visões são permitidas, assimiladas e analisadas. Wagner foi o primeiro artista a ter criado um teatro para representar unicamente suas obras. No início, a atitude foi tomada como egocêntrica. Hoje consiste numa tradição que conseguiu sobreviver à queda das ideologias e utopias. A causa de resistência é artística.

Friedrich Nietzsche resumiu a intensidade da arte wagneriana numa frase que pronunciou ao finall da primeira representação do "Anel'': "Acaba de ocorrer a primeira circunavegação pela arte total'' (6). Com a tetralogia, o compositor fundiu linguagens e antecipou o cinema sonoro em 49 anos. Fez da ópera uma arte psicanalítica (como o cinematógrafo segundo Benjamin), em que, pela primeira vez, o espectador era convidado a permanecer no escuro e se encontrar com o próprio inconsciente. Esta foi a maior contruibuição do compositor: fazer da ópera uma modalidade de taumatógrafo (primitiva máquina de produzir imagens e movimento) da alta cultura. A fantasmagoria, o teatro de sombra e a câmara escura se casam com o drama musical.
Luise Jaide (Erda), Bayreuth, 1876
Num texto de 1861, intitulado "Richard Wagner e "Tannhäuser' em Paris'', o poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) anteviu a concretização dessa arte, Descobriu o forte componente visual e fantasmagórico em "Tannhäuser'', ópera que fez escândalo em Paris no ano anterior mais pela cena do bacanal do que pela música. Compara a música da ópera a "'uma luz intensa que regozija os olhos e a alma até o desvanecimento. e, enfim, a sensação do espaço estendido até os últimos limites concebíveis'' (7). Baudelaire segue nas metáforas visuais. Jura que Wagner é um músico insuperável na pintura (ele grifa a palavra) "do espaço e da profundidade, materiais e espirituais'' (8). Compara a sensação provocada pela música wagneriana ao delírio ópio: "Parece, às vezes, ao escutarmos esta música ardente e despótica, que reencontramos pintadas sobre fundo das trevas, dilacerado pelo devaneio, as vertiginosas concepções do ópio'' (9). O que diria o poeta se tivesse conhecido Bayreuth e mesmo o cinema? Baudelaire, sensível ao amanhecer das tecnologias, confessa em carta a Wager que, desde o dia em que ouviu sua música, diz incessantemente: "Se ao menos eu pudesse ouvir esta noite um pouco de Wagner!'' (10). Sem fonógrafo ou qualquer meio de reprodução, Baudelaire sofre de uma ansiedade antecipatória. Intui o fonógrafo e o cinema da necessidade imperiosa de ouvir uma música no meio da noite, nos "maus momentos''. A música de Wagner, e de resto toda a música, assumiria tal função catártica no século seguinte.

O desafio de Wagner estava em representar em palco o mito dos Nibelungos e fazer com que o público o carregasse para casa, sem ajuda de nenhum tipo de aparelho. Sua abordagem nada tinha de ingênua. Segundo ele, o mito era "a representação do involuntário''. A noção wagneriana de mito prenuncia o conceito de inconsciente psicanalítico. O drama musical ilude, hipnotiza, faz o espectador mirar-se no mito. É psicanalítico.
 
 
 Johannes Elmblad (Fafner), Bayreuth, 1896

Fade out
 
 

Antes de Wagner, o teatro de ópera permanecia iluminado ao longo da récita. Wagner concebou o "fade out'' do público para potencializar o efeito da ilusão cênica. Converteu o teatro em "camara oscura'', em projetor de imagens ideais, visuais e sonoras. Isso antes da lâmpada incandescente, patenteada por Edison em 1879. Bayreuth, aliás, viria a ser um dos primeiros teatros a possuírem iluminação elétrica, já em 1888, com o velarium de 124 globos. O "mystischer Abgrund'' constituiu outro procedimento ilusionista. Assim,oculta, a música passou a servir às ações do palco. O primeiro mestre da ópera, o italiano Claudio Monteverdi, teve suas idéias restauradas. Dizia ele: "A música é a serva da poesia''. O argumento final do "drama per music'' monteverdiano está na ação. De protagonista l(ou quase) na tradição do bel canto, que se sucedeu ao modelo de Monteverdi, a música se transformou com Wagner em encarregada da trilha sonora. Também ela funciona na "camara oscura'', premida entre duas chapas de madeira, de forma que o som passe por uma filtragem, uma equalização avant la lettre. No Festspielhaus, a platéia atua como caixa de ressonância, já que está disposta como num anfiteatro, e n plano inclinado sobre um vácuo entre madeiras.

Por tal processo, os metais ganham um timbre arredondado e cada detalhe da melodia das cordas e madeiras é ouvido. O fosso calha à homofonia (mais uma vez Monteverdi: a ópera nasceu da abolição da polifonia renascentista), às notas sustentadas e às fermatas, típicas da flutuação agógica de Wagner. Uma obra construída em polifonia radical, como a de Palestrina ou Lassus, desmoronaria no Festspielhaus. Melhor, viraria um bloco sem nitidez harmônica. O som da orquestra se projeta para os cantores e só então rebate no fundo do palco e volta para o público, numa eterna defasagem de tempo. Este se espacializa e adquire aspecto de quase-imagem.

O caráter cinematográfico da arte wagneriana se mostra explícito quano se visita o Festspielhaus. A primeira impressão que o galpão com quase 2 mil cadeiras dispostas em semicírculo causa é a de um enorme e antigo cinema -daqueles construídos nos anos 10 e 20 nos Estados Unidos, na era do cinema mudo, onde devia caber uma orquestra (escondida) e uma platéia faminta de mitos. O palco de Wagner, em relação especular com o auditório, um e outro com a mesma dimensão, remete a uma tela tridimensional, uma caixa luminosa (a anticaixa escura) para cujo centro se encaminham lentamente os sons do fosso secreto da orquestra. O resultado da maquinaria de ilusão é a hipinose do público. Para os mais ingênuos, as cores são de uma experiência mística, ou opiástica. O Festspielhaus é mais cinema do que teatro, pois todos os elementos servem à máquina de fazer drama musical. No palco se dá o simulacro da imagem, não a presença do corpo, tão própria do teatro. O processo industrial rege os movimentos, os sons, as mudanças de cena. A ausência de fotogramas é compensada pela circulação evanescente dos corpos, dos corpos sonoros únicos, não reproduzidos mas gerados no "hic et nunc''.
 
 
 

Projeções
 
 
 

O suporte tem pequena relevância. Wagner quis unir todas as artes na noite de estréia da tetralogia. Na "Cavalgada das Valquírias'', terceiro ato de "A Valquíria'', ele projetou imagens das deusas desenhadas por seu colaborador, Carl Döpler, por meio de uma lanterna mágica. Foi um fracasso, o público se entreolhou sem entender o que se passava. As imagens foram mal projetadas e não surtiram o efeito previsto. Ninguém viu que aquela era uma materialização das futuras montagens multimidiáticas que fariam parte dos festivais de Bayreuth.

A paixão pelas imagens exclusivas tomou conta do público em Bayreuth na sua primeira fase. Todos os wagneristas temiam o ano de 1913, quando expirariam os direitos autorais de Wagner. Apavoravam-se em ver roubada a aparição única da obra. "Parsifal'', espetáculo concebido para ser representado exclusivamente em Bayrueht, ganhou palcos do mundo inteiro. Mas a aura resistiu porque nenhuma outra casa de ópera logrou obter o resultado sonoro rotundo do Fespielhaus, ambiente para o qual a obra havia sido escrita. Nenhum outro eento semelhante conseguiu reproduzir o impacto das ressonâncias reais. Mesmo os Cds com alta tecnologia produzem uma resultante sonora metálica e aguda. O som produzido no Festpielhaus é o assinalado por Wagner. Corresponde sonoramente à abóbada do Duomo de Florença criado por Bruneleschi na Renascença. É um prodígio de arquitetura do som.

Tal som assegura o fundamento aurático de Bayreuth. A aparição única do som wangeriano só vai cair com as paredes do teatro. Já o cinema teve as paredes implodidas pelo vídeo e os microcomputadores. Pelo tubo de TV, o cinematógrafo deixou de escurecer os cérebros e voltou ao útero do taumatógrafo. A imagem se passa às claras, evidente como uma realidade material. A idéia genuína do cinema não é mais conservda no cinema contemporâneo. Mas ainda vibra no violoncelo de Bayreuth.
 


Referências Bibliográficas
 
 

1. BENJAMIN, Walter (1936). "A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução''. In: Textos Escolhidos, coleção Os Pensadores. São Paulo, Editora Abril, 1980. p. 9. Tradução de Paulo Eduardo Arantes.

2. Idem, p. 11.

3. Idem, p. 23.

4. Idem ibidem.

5. NIETZCHE, Friedrich (1888). Il caso Wagner. Milano, Mondadori,1970. Tradução de Ferruccio Masini e Sossio Giametta. p. 15.

6. O episódio é comentado por SPOTTS, Frederic (1994). Bayreuth - a history of the Wagner Festival. Yale, Yale University Press, 1994. 334 pp.

7. BAUDELAIRE, Charles (1861). "Tannhäuser'' em Paris. São Paulo, Imaginário/Edusp, 1990. Edição bilíngüe, com tradução de Plínio Augusto Coêlho e Heitor Ferreira da Costa. p. 41.

8.. Idem ibidem.

9. Idem, p. 43.

10. BAUDELAIRE, Charles (1860). Carta a Wagner. São Paulo, Imaginário/Edusp. p. 23.



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