The conductor Georg Solti

A retirada à francesa de Georg Solti



A comoção coletiva em torno dos funerais da princesa Diana, no dia 6 de setembro de 1997, ofuscou as mortes de celebridades como madre Teresa de Calcutá. No setor artístico, ficou em segundo plano o fim inesperado do maestro húngaro Georg Solti, um dos maiores nomes da regência no século XX, o grande patriarca da batuta da atualidade e também ele nobre. Em 1972, a rainha Elizabeth lhe concedeu o título de "sir", ocasião em que se tornou cidadão britânico. Ele morreu no sábado no sul da França, onde passava férias. Segundo Charles Kaye, assistente da Orquestra Sinfônica de Chicago, da qual Solti era diretor artístico, o maestro teve uma parada cardíaca enquanto dormia.

Contava 84 anos de idade. As emissoras de TV noticiaram o fato resumidamente e os jornais lhe dedicaram pouco espaço. O tenor italiano Luciano Pavarotti entrou na abadia de Westminster, onde se realizaram as exéquias de Diana, exibindo uma expressão de choque. Não era por causa da princesa. Ele havia acabado de receber a notícia da morte de Solti. Foi uma retirada à francesa do maestro, discreta demais para sua brilhante carreira. A música erudita anda mesmo em baixa no mercado das estrelas.

O regente deixa incompletos vários projetos de fôlego. Em 28 de janeiro, em Londres, assinou um contrato vitalício com a gravadora Decca, o primeiro desse tipo emitido pela companhia britânica. No pacote de gravações estavam previstas sessões com a Sinfônica de Chicago e Filarmônica de Berlim. Ao voltar das férias, gravaria o "Requiem", de Giuseppe Verdi, e uma nova versão da ópera "Tristão e Isolda", de Richard Wagner, que ele havia registrado em 1960. Em outubro, ele participaria do lançamento de sua autobiografia, feita em parceria com o jornalista musical Harvey Sachs.

Solti estava começando a usufruir da liberdade das pesadas obrigações junto à Sinfônica de Chicago e ao Festival de Salzburgo. Na primeira, atuava como consultor. Seu cargo na direção artística da orquestra era honorário. Em agosto de 1996, ele se despediu da tarefa de organizador de concertos do festival. Regeu, ao vivo, pela última vez, a ópera "Elektra", de Richard Strauss. Em janeiro deste ano, a Decca lançou a coleção "Solti-Decca Golden Jubilee", com 20 títulos em CD, comemorando o cinqüentenário da parceria do maestro com a gravadora. Quatro meses depois, organizou e lançou a trilha-sonora da superprodução hollywoodiana "Anna Karenina". O lançamento do seu CD mais recente se deu em Salzburgo em agosto, pouco antes das férias na França. É a nova versão de "Don Giovanni", de Mozart, com o barítono Bryn Terfel e a soprano Renée Fleming. Outra edição importante acontece agora, com a versão remasterizada do ciclo "Anel dos Nibelungos", em 16 CDs, a partir das matrizes originais do ciclo de Wagner realizado entre 1958 e 1965, à frente da Filarmônica de Viena. Foi o primeiro "Anel" concebido totalmente em estúdio de gravação.

Solti foi um dos raros maestros do século XX a ter conseguido equilibrar a reputação entre o estúdio quantom, a ópera e o concerto ao vivo. Não se rendeu ao fetiche tecnológico, como Herbert von Karajan ou Leopold Stokowsky, mas também não deu as costas ao disco, à maneira de Sergiu Celibidache e, mais recentemente, Sylvain Cambrelaing. Soube se valer dos dois meios de expressão e construir a fama no percurso que vai de um universo a outro. Produziu bem sua imagem. Não recusou entrevistas nem se furtou a uma agenda internacional que o obrigava a longas viagens de avião.

Solti é o maestro da era do jet legging, do stress de vôo. Inaugurou a figura do regente internacional que assume uma direção artística em Chicago e outra em Paris, sem deixar de cumprir a programação de Londres. Inventou uma nova forma de ensaio, mais enxuta e curta. Contou, para isso, com a ajuda de assistentes e conselheiros. O lugar-comum já se repetiu muitas vezes, mas, agora, se aplica: Solti foi mesmo o último sobrevivente de uma era.

Nascido em Budapeste em 21 de outubro de 1912 em uma família judia, conviveu com o compositor húngaro Béla Bartók (1881-1945), foi aluno de Zoltán Kodály (1882-1967), trabalhou com o compositor alemão Richard Strauss (1864-1949) e se tornou, em 1937, assistente do maestro italiano Arturo Toscanini (1867-1956).

Como regente, não teve um papel revolucionário. Apreciava a fidelidade à partitura e a exploração das emoções fortes da platéia. Cultivou o repertório clássico e romântico e não alcançou a moda da música histórica. Foi um dos maiores especialistas na condução de ópera no século XX. Regia Mozart com o ouvido de Richard Strauss e Strauss como o compositor gostaria de se ouvir. Consolidou o estilo preciso e racionalista de Toscanini. Seus gestos eram contidos e concentrados no poder da batuta. Quando agradecia os aplausos, projetava as duas mãos para frente, como a dizer que o público pecava pelo exagero. No fundo, porém, orgulhava-se da glória de que gozou em vida. "Convivi com algumas das principais personalidades do século XX que contribuíram para o desenvolvimento musical deste século", escreveu, quando completou 80 anos, citando como importantes para seu estilo os compositores Bartók, Kodály, Strauss e os maestros Wilhelm Furtwängeler, Bruno Walter e Toscanini. "Acredito que meu contato direto com essas figuras me deu condições de carregar as grandes tradições da ópera e da música orquestral até a última década do século 20". Via-se como sacerdote da tradição; em outras palavras, da escola pós-romântica de regência.

Solti and his siter Lily in 1925

Começou a estudar piano com 6 anos de idade. Formou-se na Academia Liszt de Budapeste. Estudou piano com Arnold Székely, um dos especialistas na técnica de Liszt nos anos 20. Em 1926 (ou 27, Solti não se lembrava), Székely adoeceu e Bartók o substituiu por seis semanas. "Foi por puro acaso que Bartók se tornou um dos meus professores", recordava. Segundo Solti, Bartók lecionava apenas piano. "Ele nunca deu aulas de composição, privadas ou públicas. Era um pianista maravihoso cujos compositoes favoritos eram Mozart, Bach, Debussy e Liszt. Raramente enfrentava Beethoven, enquanto que Debussy era seu ídolo. Ele falava pouco e de umamaneira tão tímida!". Solti conta que Bartók se sentava ao piano para dar aula e corrigir os erros. Os alunos tinham que descobrir o que ele queria por meio da escuta musical, pois ele nada dizia.

Solti se formou em 1930 e estreou como pianista repetidor da da Orquestra Estatal de Budapeste. Mas já estava decidido a se tornar maestro. A idéia lhe ocorreu aos 13 anos de idade, durante um concerto regido por Eirch Kleiber. Como repetidor, teve oportunidade de conhecer todo o repertório sinfônico e operístico, além de tomar parte das excursões internacionais da orquestra. Foi assim que conheceu Salzburgo, em 1936. Voltaria à cidade no ano seguinte, levando uma carta do intendente da Ópera de Budapeste ao diretor do do festival, barão Puthon. A carta solicitava permissão para que Solti assistisse aos ensaios do festival. Numa tarde, recebeu a incumbência de substituir o repetidor dos ensaios de "A Flauta Mágica", que estava gripado. Começou a ensaiar os cantores antes de o maestro chegar. "Depois de algum tempo, me dei conta de um homem pequeno olhando para o poço da orquestra. Era Toscanini. Ele disse uma palavra: 'Bene'. Meu coração disparou". Naquelas récitas da ópera, Solti tocaria glockenspiel. Voltou para a Hungria. Estreou na regência da Ópera de Budapest em 11 de março de 1938, com "As Bodas de Fígaro". Naquele dia, a anexação da Áustria ao Reich havia sido declarada.

O jovem regente perdeu o emprego em 1939 e foi aconselhado por amigos a abandonar a Europa. Foi tentar a sorte como pianista na Suíça quando recebeu um telegrama de sua mãe, pedindo que não voltasse mais. Encontrou Toscanini em Lucerna. O maestro prometeu ajudá-lo. Tinha acabado de abandonar Salzburgo para se exilar em Nova York. Solti permaneceu na Suíça. Em 1942, ganhou o primeiro prêmio do Concurso Internacional de Piano de Genebra.

Solti playing piano in 1942

Somente em 1946 retomou as atividades como regente. Assumiu a direção musical da Ópera de Munique, como sucessor de Bruno Walter. "Eu não tinha nenhuma experiência em ópera a nãoser a de Budapeste e não regia havia sete anos. Mas os admnistradores sustentaram minha falta de experiência". Nos seis anos em que esteve no cargo, aprendeu todos os macetes de organização de uma casa de espetáculos e regeu 45 óperas.

Em 1947, estreou em disco, como pianista. Gravou, ao lado do violinista Kulenkampff as sonatas para violino de Brahms e Beethoven. No mesmo ano, conduziu a gravação da abertura "Egmont", de Beethoven, com a Orquestra Tonhalle, de Zurique.

Conheceu Richard Strauss em junho de 1949, durante os ensaios preparatórios para a apresentação da ópera "O Cavaleiro da Rosa", evento comemorativo dos 85 anos do compositor. Solti tinha dúvida sobre os tempos das óperas de Strauss e aproveitou para falar sobre o assunto ao ser convidado para um almoço com o compositor. Segundo o maestro, Strauss recomendou o seguinte: "Eu coloquei a música para os di´logos. Tente prounucniar as palavras. Se você puder fazer isso corretamente, então você terá o temkpo correto". Solti disse nunca ter se esquecido do conselho, aplicando-o dali por diante. Strauss morreu algumas semanas depois. Solti se encarregou de reger a música de seu funeral. Ao longo de toda a vida, tornou-se a principal autoridade no compositor. Não deixou que as óperas de Strauss se apagassem da memória do público e dos programadores das casas de ópera.

Voltou em 1951 a Salzburgo para reger as récitas da ópera "Idomeneo", de Mozart. No ano seguinte, assumiu a direção musical da òpera de Frankfurt. A carreira internacional decolou. Regeu na Ópera de San Francisco, no Festival de Glyndebourne e dirigiu "A Flauta Mágica" em Salzburgo em 1956, ano em que se comemorou o bicentenário do nascimento de Mozart. Enfrentou projetos de gravação, como o do "Anel" e da "Sinfonia nº 5", de Mahler, com a Orquestra Sinfônica de Chicago. Recebeu o primeiro dos seus trinta prêmios Grammy pela gravação da ópera "Aída" (o último foi pela gravação da "Missa em Si Menor", de Bach, em 1992). Assumiu a Sinfônica de Chicago em 1969, o Covent Garden em 1971 e diretor do festival de páscoa de Salzburgo em 1990.

Die Walküre, recording session, 1965

A conselho de Bruno Walter, nunca deixou de reger óperas. Tornou-se uma missão para ele. "Sem mim, disse-me Walter, haveria um vazio entre a velha e a nova geração e muito dos procedimentos do início do século se perderiam no final". Seus planos se estendiam para a eternidade. Um vigor fora das barras de compasso o levava a assumir muitos compromisssos e haveria um momento em que teriam que ser suspensos. Concluiu, porém, a tarefa a que se propôs. Sir Georg Solti segurou viva a leitura pós-romântica até quase o fim do século XX. Conservou em CD e videolaser óperas e concertos antológicos. Só não deixou herdeiros estéticos. De certa forma, a música do século XIX foi com ele para a tumba.

Luís Antônio Giron

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