Rhomer faz metafísica da profundidade da música


Cenografia par Ato II de Don Giovanni (1789), por J. Quaglio

O musicólogo alemão Carl Dahlhaus escreveu nos anos 70 que a estética da música, essa disciplina meio bastarda extraída da filosofia no fim do século XVIII, representou um momento bastante particular no pensamento ocidental, o da mentalidade pequeno-burguesa. O exercício de pensar sobre a música seria uma disciplina da frivolidade que se desenvolveu com os primeiros freqüentadores de recitais e concertos românticos. A estética do ouvinte (a crítica musical) é uma digressão em torno dos efeitos possíveis da música em sua sensibilidade, ainda que baseada em genuíno conhecimento musical. É um dos frutos mais suculentos da metafísica aplicada ao público espectador. Segundo Dahlhaus, a digressão a respeito da música é um oficio findo, que sobrevive apenas por insistência da fantasia que a música provoca em algumas mentes. Ao longo do século XX ficou fora de moda especular sobre aspectos pragmáticos da audição e a essência da arte musical. Os musicólogos desbancaram os críticos e impuseram a análise técnica para eliminar o impressionismo. A música passou a ser descrita como uma combinatória destituída de qualquer pertinência fantasmática.

Na contracorrente da musicologia, o cineasta francês Eric Rhomer, 77, decidiu no início deste ano publicar uma obra que tenta restituir ao ser humano não-especialista o direito de escrever e pensar sobre música. O resultado da aventura de audição está no livro "Ensaio sobre a noção de Profundidade na Música - Mozart em Beethoven" (De Mozart en Beethoven: essai sur la notion de profondeur en musique"), que está sendo lançado no Brasil. Dando de ombros ao desconstrutivismo das últimas décadas, Rohmer assume a tão combatida noção de profundidade para verificá-la nas produções dos compositores Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) e Ludwig van Beethoven (1770-1827). O livro propõe uma digressão estimulante em torno dos quintetos para corda daquele compositor e dos últimos quartetos de corda deste, sem fugir dos exemplos musicais e da análise de trechos de partituras. O projeto é utópico, mas faz o leitor recobrar um pouco de sua autoconfiança no humanismo, na estética e no valor positivo da música.

Em dez capítulos subdivididos por intertítulos e povoados de trechos de partitura, oO cineasta recicla a crítica musical em grande estilo. É um dos mais interessantes livros de estética música escrito na década de 90, ainda que contenha afirmações questionáveis, por serem excessivamente pessoais.

As partituras presentes no volume, porém, não devem assustar o leigo, já que vêm acompanhadas por indicação de gravações, inclusive com minutagem e intérpretes. Tais informações foram acrescentadas na tradução. Esta, no entanto, trai grandes negligências. Os trechos de partituras, por exemplo, vêm com indicação em francês, com a palavra "mesure" em vez de "compasso", além do que estão quase ilegíveis, com caracteres minúsculos e pentagramas borrados. Alguns nomes são grafados erradamente, como "Suávia" em vez de "Suábia" à página 52, para designar a região hoje pertencente à República Tcheca, antiga província alemã, ou "Praxítelo" (página 49) como nome do escultor Praxíteles (seria como refundir o nome de Aristóteles para "Aristótelo", o que está errado em termos de regras de transcrição dos nomes gregos). Mas o mais grave é a introdução de neologismos que soam desajeitados em português, como "pertencimento" (também na página 52) em vez de "vínculo". Displicência ainda pior consta da página 128. Ali, o intertítulo é "Coplas". Quando o leitor se debruça sobre o texto, percebe que ele não tem nada a ver com "pequena composição poética" ou "quadra" ou "letra de música", significados que a palavra possui em português. "Copla", aqui, nada mais é do que a tradução equivocada do vocábulo francês "couple", que significa "par", "casal", "dupla". "Copla", em francês, não é "couple", mas "couplet", termo típico do teatro rebolado. Assim, lê-se a seguinte passagem polvilhada com o falso cognato: "É difícil, para mim, como se vê, falar de Mozart sem lhe associar Beethoven. E me agrada, à medida que avanço neste passeio que deve me levar de um ao outro, insistir cada vez mais no que os aproxima, e menos no que os separa. Sem dúvida, eles formam uma dessas coplas (sic) antitéticas que marcam a história das artes: Michelangelo/Rafael, Rembrandt/Rubens, Ingres/Delacroix, Picasso/Matisse ou ainda Sófoclores/Eurípides, Corneiile/Racine, Goethe/Schiller, Balzac/Stendhal etc. Coplas (sic) que, aliás, muitas vezes reivindicaram essa oposição". O efeito é cômico. Daí não deixar de ser tambem jocosa a menção dos textos biográficos da dupla (e não "copla") de tradutores, que figuram logo abaixo da de Rohmer à página 239 do volume.

De qualquer forma, o texto do autor não chega a se prejudicar demais com tais interferências. Ele dirige um olhar "inocente" ao objeto musical para, assim, dar uma contribuição de forasteiro ao assunto. Diz que para gostar de música plenamente "não é psuficiente escutar música", mas é preciso "falar, e gostar de falar de música". Abordando algumas das obras mais difíceis de Mozart e Beethoven, vai além e acha que para apreciá-las de verdade e senti-las na profundiade "é necessário dançá-las, e não somente em espírito -o que cria, de fato, alguns problemas, quando a gente é estudante e mora num quartinho minúsculo". O objetivo do ensaio é descrever na dupla de compositores "os processos de criação de formas absolutamente originais -formas que, como veremos, podem também, conforme o caso, ser 'cores'. "

De capítulo a capítulo, Rohmer iça as velas do juízo estético e se deixa errar pela digressão. Ele incorre naquela faculdade de detectar profundidade que Wittgenstein identifica como característica da metafísica mais banal. Desde a "Filosofia da Composição", de Edgard Alan Poe, a profundidade tem sido deixada de lado em benefício à suposta "superficialidade" das estruturas. O cineasta não parece se importar com os grandes impasses do pensamento contemporâneo. Começa dizendo que Mozart é o mais profundo entre os compositores. Sua profundiade vem não do pensamento propriamente dito do sujeito, mas da idéia que se despreende da música que escreveu. Faz desfilar, então, teorias filosóficas associadas à evolução das formas musicais, num emaranhado que desafia o demônio associativo do leitor. Segundo Rohmer, a profundiade de Mozart está na compreensão do domínio do tempo fornecido pela introdução na prática musical da forma-sonata em meados do século XVIII, procedimento escritural que implica um raciocínio silogístico na concatenação dos temas e seus respectivos desenvolvimentos. O mestre de Sazlburgo compreende, como ninguém, a importância da forma-sonata para a instauração do universo da metafísica, no que é seguido por Beethoven. Os dois são inconscientemente kantianos e partilham com o pensador do pensamento transcendental. Se Johann Sebastian Bach encarava a música à maneira do axioma de Leibniz ("Música é um exercício de aritmética inconsciente de um espírito que não sabe que calcula"), Mozart e Beethoven parecem rezar pela inversão de Schopenhauer, segundo o qual música é "um exercício de metafísica inconsciente em que o espírito não sabe que filosofa".

A consciência transcendental se dá apenas entre os grandes músicos, acha Rohmer. Para ele, a história das formas sonoras deve ser a dos grandes músicos. Não há surpresas ou descobertas possíveis. Mozart e Beethoven introduziram o drama e a temporalidade ontológica no discurso musical puro, desautomatizando o tempo circular da era barroca. Kant descobriu o caráter concreto e sintético do tempo. Enquanto a certeza matemática é abstrata, a transcendental se dá no ato de pensar e é geral. De acordo com Rohmer, a música tem o priviégio de exprimir o geral sem ter que abstrair um conceito ou um número, mantendo uma potencialidade que nunca se cumpre. "O gênio de Mozart", escreve. "reside em ter sabido, mais do que qualquer outro, cumpri-la. Ele consegue dar à generalidade absoluta a expressão da concretude absoluta. A profundidade transcendental da música só pode ser percebida pela graça particular das maiores obras que, sem tirar nada da idéia geral (...) e nada de sua generalidade, fazem dela não mais um conceito, mas um sentimento tão forte, tão pungente quanto um tumulto de nosso coração".

As análises de Rohmer pouco ou nada têm de musicológicas. No confronto entre o "Quinteto para Cordas em Sol menor K. 516", de Mozart, e o "Quarteto op.130", de Beethoven, conclui que aquele é mais profundo, ao passo que este vibra mais material e acessível ao ouvido. "Se a música de Mozart pode ser dita musica das Essências, a de Beethoven, na medida em que essas duas noções se opõem por sua conotação, respectivamente objetive e subjetiva, é uma música das Idéias". Mozart é retilíneo e trata do ser enquanto tal com o não ser, "um eu que pensa que pensa, que se contempla pensando". Já Beethoven se deixa embriagar pelo espírito, o gozo sensível, a "cor" do som e a inovação absoluta. A profundidade de ambos resulta em "boa consciência", em esperança para a humanidade.

Talvez a música de Mozart e Beethoven não expresse todo a teia sensória-transcendental descritoapor Rohmer. Talvez ela só se exprima a si mesma e seja semanticamente rasa, como queria o compositor russo Igor Stravinsky. O ensaio do cineasta, entretabim faz crer que existam fantasmas e fantasias impregnadas nos pentagramas dos dois mestres. Rohmer ouve ectoplasmas a emanar das obras clássicas que analisa, traços que os musicólogos do século XX ignoraram. Por isso e por méritos literários que a tradução nao encobre, o ensaio vale a pena ser lido e estudado até pelos especialistas que fazem da música apenas uma tabula rasa, modalidade de matemática ambígua. Quem sabe passem a ouvir música com mais imaginação.

Luís Antônio Giron                                                    (Gazeta Mercantil, 21/11/97)


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