Upsala, o jardim de afetos de Roberto de Regina

 

O cravista e regente carioca Roberto de Regina celebra os 70 anos de idade e 40 de carreira com o álbum duplo "Cancioneiro de Upsala" (Paulus, R$ 30,30). À frente do grupo vocal e instrumental Camerata Antiqua de Curitiba, ele realiza a primeira gravação mundial da coleção seiscentista de 54 villancicos para diversas formações vocais. O CD é um marco na evolução da interpretação da música histórica no Brasil. Não só exibe rigor musicológico por meio dos instrumentos de época, como, principalmente transmite a força ancestral de canções monódicas e polifônicas com letras da mais variada espécie em castelhano, catalão e galego-português de poemas amorosos a narrativas libertinas, sem deixar de passar por autos de Natal e elegias à Virgem Maria. O entusiasmo dos músicos é capaz de contagiar o ouvinte desde a primeira audição.

Fundada em 1974, a Camerata possui dezessete cantores e sete instrumentistas (cravo, krummhorn, flauta, precussão, alaúde e violas da gamba). É um dos grupos mais antigos do gênero em atividade na América. O disco revela a maturidade do conjunto. Foi gravado no início de 1997 em dois teatros de Curitiba: o da Ordem Rosa Cruz e o da Federação Espírita. Mas não há nenhum miasma fantasmático na gravação. Esta se apresenta bruta e muitas vezes sensual. Tem havido uma melhora interpretativa por parte do grupo. Apesar de praticar uma música retroativa, a Camerata tem evoluído diacronicamente. Há dois anos, lançou um CD com cantatas de Bach que deixava a desejar tanto pelo aspecto técnico quanto pela qualidade de gravação. O conjunto parece ficar mais à vontade num repertório profano e renascentista. Colaborou para o progresso o trabalho de Roberto de Regina.

O traço distintivo das abordagens do músico reside na junção da pesquisa e da intuição, com peso maior nesta última. Em vez de observar a fidelidade total a determinada escola interpretativa em voga, Regina se dá direito à liberdade de expressão. Não chega a infringir as leis básicas da música histórica. No entanto, em comparação com boa parte das interpretações musicológicas européias, suas leituras soam expansivas e sem o travo que muitos deixam passar por se terem debruçado demais nas partituras.

Sua postura tem sido íntegra no passar das décadas. Músico a princípio amador (é médico), fundou em 1950 o Coral Dante Martínez. Desde o início da formação musical em São Paulo, onde passou a infância, interessou-se pela música pré-clássica. Foi um dos primeiros músicos a ter se interessado seriamente por esse tipo de tradição, então esquecida. Nos anos 60, fundou o Conjunto Roberto de Regina e excursionou pela Europa com um programa em que incluía villancicos do "Cancioneiro de Upsala", bem como outras peças de origem ibérica. Numa época em que os músicos históricos pareciam se apresentar dentro de cubos de gelo, ele chamou a atenção pela sexualidade que imprimia a supostas antigüidades. Antes da moda da carnavalização, Roberto de Regina e grupo eram rabelaisianos.

Ele manteve paralela uma carreira brilhante como cravista e ainda encontrou tempo e ânimo para repetir e ampliar a experiência snesualista no novo trabalho. "O Cancioneiro de Upsala, além de ser uma incursão pelos meandros dos sentimentos através de sua poesia, de delicadas acrobacias literárias, é um formidável exercídio para o ouvido, par a precepção do contraponto", escreve no livreto do CD, que traz um ensaio sobre a obra e todas as letras dos villancicos. Termina por chamar a coleção de "jardim de afetos".

O CD propõe uma experiência musical e literária. O "Cancioneiro de Upsala" integra a grande tradição ibérica de reunir canções e madrigais (villancicos são madrigais ibéricos cantados nas línguas locais) em coleções que remonta ao século XV. O de Upsala é conhecido assim por ter sido descoberto em 1904 pelo musicólogo e diplomata espanhol Rafael Mitjana na Biblioteca da Universidade Real de Estocolmo. O volume ficou esquecido ali desde o século XVII. É o último remanescente do chamado "Cancioneiro do Duque de Calabria", publicado em Veneza em 1556, mandado publicar por don Fernado de Aragón, duque da Calábria.

As peças se desenrolam num "gradus ad Parnasum", por etapas de complexidade, e assim são executadas nos CDs. No início, são doze obras a duas vozes. Seguem-se doze a três, doze a quatro, para encerrar com seis composições a cinco vozes. O conteúdo dos poemas varia. As letras se filiam à série hispano-muçulmana. Seguem a forma da canção estrófica popular em voga na península desde o século IX, chamadas de "zéjeles". A estrutura rítmica é basicamente A-B/A-A-A;A-B/B-B-B-;A-B/C-C-C. Compreende repetições de estrofes e de motivos musicais, geralmente dançantes e de origem folclórica. A influência árabe se dá tanto na forma poética dos villancicos como no aspecto rítmico e melódico. Canção em galego, por exemplo, diz o seguinte: "Mal se cura muyto mal,/Mas en poco cando tur/Muyto mas peor se cura" (O mal se cura muito mal/ Mas encuqnto dura/ Muito pior se cura". O desejo amoroso aparece em todas as suas nuances, como no villancico de número V: "No me los amuestres mas/ Que me matarás/ Son tan lindos y tan bellos/ Que a todos matas com ellos;/ Y aunque yo muero por vellos, / No me los amuestres mas,/ Que me matarás" (Não os mostres mais/ Que me matereis/ São tão lindos e tão belos/ Que a todos matais com eles; / E mesmo eu morro por vê-los/ Não os mostreis mais/ Que me matareis) . Tudo levado por um ritmo sincopado e uma melodia divertida.

O "Cancioneiro" está cheio de caminhos ocultos que preparam surpresas para quem os visita. O jardim dos afetos também se revela como um labirinto de conflitos, jogos de linguagem e enigmas. Ouvi-los, como diz Roberto de Regina, é uma experiência estética das mais complexas, e prazerosas.

Luís Antônio Giron                                                            (Gazeta Mercantil, 7/11/1997)


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