Edição francesa de 'Turista Aprendiz' traz cortes




Por Luís Antônio Giron

de São Paulo


Lançada em abril deste ano, a edição francesa do livro "O Turista Aprendiz", de Mário de Andrade (1893-1945) -"L'Apprenti Touriste" (tradução do "brasileiro" por Monique Le Moing e Marie-Pierre Mazéas, edições La Quinzaine Littéraire, 289 págs.)- teve repercussão mediana para a importância do livro em relação à cultura brasileira. Mário de Andrade volta à moda no Brasil nos anos que terminam em três ou cinco. Este ano ganha as manchetes porque sua correspondência, depositada no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo, está aberta ao público na próxima semana. O motivo da recepção morna na França talvez esteja no fato de a obra integrar uma coleção dedicada a livros de viagem, intulada "Voyager Avec...'' (Viajar Com...). Livros de viagem são plataformas de teses exóticas. Embora o livro pouco tenha a ver com esse tipo de obra, fica enquadrado pela coleção. O prefácio é do jornalista Gilles Lapouge e o volume, luxuoso, contém diversas fotografias não publicadas no título original, estabelecido em 1983 pela pesquisadora Telê Ancona Lopes, do IEB, despositário da obra do escritor. Infelizmente, o trabalho de Telê, de enorme relevância, não foi respeitado na íntegra. Para a edição francesa, foram cortadas as variantes e textos que não se adequavam à idéia da coleção. O resultado é uma obra corrompida em um de seus aspectos mais proeminentes: o da observação etnográfica. Ficam de fora descrições de hábitos e costumes, peculiaridades culturais, como a enunciação de versos e procedimentos de prática musical.

A edição francesa traz a seguinte advertência logo no início do volume: "Para facilitar a leitura e a compreensão, a presente edição não manteve o conjunto do texto original. Este comportava diversas variantes assim como digressões sem relação direta com o objetivo desse diário de bordo, muitas vezes técnicas ou ligadas muito estreitamente à vida social e mundada dos anos trinta em São Paulo". Um critério duvidoso e absolutamente arbitrário.

Na realidade, não há tantas variantes no texto quanto querem as tradutoras. Ele foi organizado a partir de uma pasta contendo 106 páginas em página de ofício, datilografadas em azul e preto, além de um diário manuscrito e setenta crônicas publicadas no "Diário Nacional" entre dezembro de 1928 e março de 1929. Além disso, a edição brasileira de 1983, que não se pretende definitiva ou crítica, embora já se rivista desse aspecto, considerou papéis avulsos e uma agenda de bolso, escrita entre 28 de novembro de 1928 e 24 de março de 1929. Mário tinha um projeto de fazer "um livro modernista" a partir de anotações de viajante mais ou menos paródicas dos textos de viagem da época colonial. Seu material foram duas expedições de "descoberta do Brasil". A primeira aconteceu entre 7 de maio e 15 de agosto de 1927. Foi patrocinada por Olívia Guedes Penteado, quatrocentona e produtora de café. Compreendeu, entre outras localidades, Rio, Salvador Maceió, Recife, Fortaleza,São Luiz, Belém, Manaus e Iquitos. Marcou-se pela região amazônica e pelas recepções programadas pelas prefeituras locais. A segunda, profissional e mais propriamente denominada de "etnográfica", deu-se entre dezembro de 1928 e fevereiro de 1929, desta vez rumo ao Nordeste: Salvador, Maceió, Recife, Caicó, Açu, Currrais novos, Natal Macau. Entre as duas expedições, em 1928, publicou sua obra mais importante, o romance "Macunaíma". A primeira excursão lhe forneceu material para o arremate do livro, ele próprio uma espécie de viagem imaginária pelo Brasil. O texto de "O Turista Aprendiz" (o título, especula Telê, se inspirou na peça orquestral "O Aprendiz de Feiticeiro", do compositor Paul Dukas, que fazia parte do cânone dos modernistas) foi revisado e datilografado em 1943. As notas compreendem menos variantes do que esclarecimentos e anotações marginais do punho do próprio escritor.

Quanto às supostas "digressões" apontadas pelos franceses, não dizem respeito à vida de São Paulo, mas à brasileira em geral, e não dos anos 30, mas dos 20. Mário de Andrade não se considerava um cientista. "Já afirmei que não sou folclorista, escreve em Natal, em 15 de dezembro de 1928. "O folclore hoje é uma ciência, dizem... Me interesso pela ciência porém não tenho capacidade pra ser cientista. Minha intenção é fornecer documentação pra músico e não, passar vinte anos escrevendo três volumes sobre a expressão fisionômica do lagarto..." Ia fazendo anotações ao sabor dad viagens, para uso futuro. Não há nada de técnico na transcrição de trechos de letras de cocos e bois. Algumas passagens retiradas do volume francês simplesmente tratam da vida intelectual carioca e nordestina e trazem iformações importantes sobre a atmosfera da época. Um exemplo é o encontro do narrador com o desafeto Graça Aranha, em 9 de maio de 1927, logo no início do livro, cortado da versão francesa. O suíço Schaeffer, personagem inventado como homenagem ao historiador alemão G. A. Schaeffer, da comitiva da princesa Leopoldina, por admirar seu estilo, aparece na versão francesa como personagem real, sem nenhuma anotação. Mas o maior crime em relação ao livro acontece na supressão pura e simples das descrições dos cocos de Natal em dezembro de 1928, na segunda parte do volume. O texto é reeditado com corte de parágrafos e citações de versos. O pastoril da véspera de ano bom, o encontro com o poeta Jorge Fernandes, as observações sobre os cocos, tudo é extirpado. Soa bastante universal a associação que faz entre o coco e a microtonalidade: "Ora está me parecendo que os coqueiros nordestinos usam também entoar com número de vibrações que afastam o som emitido dos 12 sons da escala geral", anota em 20 de dezembro em Natal. "O quarto-de-tom de que amúsica erudita não se utilizou na civilização européia, onde esotu mesmo concvencido que os nordestinos dão. Já topei com ele três feitas nesta viagem, entoado pela preta Maria Joana, cantadeira famanada de Olinda, e por um catimbozeiro natalense. Mas pra decidir mesmo no caso de que trato carecia de aparelhos especiais que não tenho aqui".

As amputações seriam até passáveis, se as tradutoras não houvessem tirado uma passagem fundamental, datada de Natal, 10 de janeiro de 1929, 23 horas. É a descrição do método de coco de Chico Antônio, personagem principal da viagem ao Rio Grande do Norte. O texto, longo, acontece no momento em que Chico está cantando há já quatro horas (a edição adapta doze linhas). Enquanto ouve, Mário afirma que Chico "não sabe que vale uma dúzia de Carusos". E o descreve trocando canto por cachaça, "por coisa nenhuma passa uma noite cantando sem parada". Completa: "Os cocos se sucedem tirados pela voz firme dele. Às vezes o coro não consegue responder na hora o refrão curto. Chico Antônio pega o fio da embolada, passa pitos no pessoal e "vira o coco". Com uma habilidade maravilhosa vai deformando a melodia em que está, quando a gente põe reparo é outra inteiramente, Chico Antônio virou o coco". Não há nada de mais curioso, de mais exótico, no diário do escritor do que esse episódio. Ele sintetiza a curiosidade e o cuidado do viajante em anotar cada detalhe de fato cultural.

A impressão é de que os organizadores da edição francesa não quiseram fazer o esforço de traduzir versos e criar notas de rodapé com informações de cultura brasileira erudita ou regional, restringindo-se ao retrato exótico do sertão e das fantasias de um escritor europeizado e preocupado em rejeitar a tradição francesa -o que é verdade, mas não tuodo. A versão francofone apresenta o texto como definitivo. Resultou, porém, de um trabalho de compilação e montagem por parte da pesquisadora do IEB. Foi Telê que decidiu, por exemplo, dividir o volume em duas partes, cada uma referente a uma das viagens. Em francês, tudo parece menos fragmentário.

Mais uma injustiça cometida pelos franceses está na tradução, demasiado literária em registro culto para o estilo negligente e o vocabulário idiossincrático utilizado por Mário. Um exemplo está no primeiro registro do diário, ainda em São Paulo, em 7 de maio de 1927. Escreve imbuído da linguagem elíptica modernista: "E a minha alminha santa imaginou: canhão, revólver, bengala, canivete. E opinou pela bengala". Ou: "Um vazio compacto dentro de mim. Sento em mim". O texto francês traduz assim: "Ma petite âme bien-pensante a d'abord envisagé canon, revolver, canne, canif... et opté por la canne". Na retradução, "minha pequena alma bem pensante...". "En moi un vide oppressant. Je plonge en moi-même." Retraduzindo, seria algo como : "Em mim um vazio opressivo. Mergulho em mim mesmo". O texto francês retira o caráter compacto do vazio da primeira oração e passa por cima da ironia da expressão inventada "sento em mim". A "alminha santa" se transforma em "alma bem-pensante".

A introdução igualmente deixa a desejar. Lapouge "cozinha" o texto introdutório de Telê (não citado expressamente) para a edição de 1983, acrescentando impressões paradidádicas sobre o modernismo e sua relação com a cultura européia. Entre parêntese, brinca com a idéia da paixão de Mário pelo bumba-meu-boi e a relação do boi com um cabaré de Paris, batizado de Le Boeuf sur le toit: "Pergunto-me se o cabaré parisience Le Boef sur le toi, que foi o ponto de encontro de poetas no entre-guerras em rorno de Jean Cocteau não tinha sido batizado em homenagem ao boi do Nordeste. Hipótese esquisita, claro, mas que muitos índices dariam crédito. Darius Milhaud ou blaise Cendrars sendo eventualmente os padrinhos desse nome. Se esta conjetura fosse verdadeira, que ironia! Blaise Cendras, o insólito amigo dos moderinisto, tendo conseguido colocar o nome do mais parisiense dos cabarés com um "boi pé duro" que Mário de Andrade consagra como animal antiparisiense por excelência". A digressão é falsa. O título "Le Boef sur le toi" vem de uma suíte orquestral de Darius Milhaud (1892-1974), composta em 1919, quando era adido cultural francês no Rio. Ele se baseou em diversos tangos brasileiros, inclusive no "Boi no Telhado" , de Zé Boiadeiro, nome de guerra do compositor José Monteiro. Um maxixe jocoso tipicamente urbano e carioca. A obra foi apresentada em Paris com grande sucesso, até porque usava bitonalidade e compassos exóticos da música brasileira. Daí o nome. É um marco no "grupo dos seis", do qual Milhaud fazia parte. Nada a ver com o boi nordestino, dança dramática rural estudada por Mário de Andrade.

As omissões e os enganos não fazem, porém, a edição ilegível. É uma introdução à obra do escritor brasileiro, embora feita sem rigor ou critério. De resto, "O Turista Aprendiz", em português ou em francês, serve como introdução à propalada "pansexualidade" (Antonio Candido dixit) do escritor. Há diversos episódios que dispensam abertura de cartas "comprometedoras" para o leitor deduzir as inclinações libidinais de Mário. Sua paixão por Chico Antônio vai além do coco. Outro epistódio sintomático se dá em 17 de julho de 1927, quando um rapaz sobe ao barco, habitado por Mário , dona Oiívia e duas adolescentes. Ele se ocupa na descrição do sujeito e arremata: "A imagem do moço me persegue. Ter uma maleita assim, que me deixasse indiferente..."

A edição crítica e definitiva de "O Turista Aprendiz" ainda está por ser completada. Se os franceses fossem esperar por ela, talvez a tradução nunca fosse feita. Arriscaram-se e cometeram falhas. Fora do âmbito do IEB, abordar o assunto Mário de Andrade é uma empresa perigosa.