Biografia

CD faz homenagem a Francisco Curt Lange



O musicólogo alemão Francico Curt Lange morreu em Montevidéu, Uruguai, no último dia 5, aos 93 anos de idade, sem ter sabido que o coral Ars Nova de Belo Horizonte iria lançar, pouco depois, um CD com obras de três compositores mineiros coloniais, cujas partituras ele havia recuperado nos anos 40. São elas ``Magnificat´´, ``Visitação dos Passos´´ e ``Motetos dos Passos´´, de Manoel Dias de Oliveira (1735-1813), ``Himno a Quatro´´, de Marcos Coelho Neto (1746-1806) e ``Gradual para o Domingo da Ressurreição´´, ``Tercis´´ e ``Antiphona de Nossa Senhora (Salve Regina)´´, de José Emerico Lobo de Mesquita (1756-1806). O CD, patrocinado pela Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto Herbert Levy e Gazeta Mercantil, intitula-se ``Mestres da Música Colonial Mineira vol. 1´´ e foi gravado em setembro de 1996 no auditório da Cemig. A regência é de CarlosAlberto Pinto Fonseca, com uma orquestra de músicos convidados, entre eles o cravista Rubens Ricciardi e o spalla Max Teppich. O CD coloca um novo marco na execução de música colonial brasileira, tão prejudicada por gerações de interpretações de má qualidade. O estilo de abordagem segue as últimas pesquisas musicológicas, que buscam a discrição das vozes e a utilização do baixo-contínuo, o acompanhamento com cravo e violoncelos típico do Barroco e que ainda era utilizado em Minas na época áurea de sua música, entre 1770 e 1800..

Sem o trabalho desbravador de Curt Lange, nenhum disco de música mineira colonial teria sido possível. Muito menos a execução corrigida pela musicologia. As parituras dessas obras pertencem `a Coleção Curt Lnge, depositada em 1990 pelo pesquisador n o Museu da Inconfidência de Ouro Preto. Muitos colegas de Lange o criticavam pelo fato de ele haver completado as partituras que en ontrou em suas pesquisas pelo interior mineiro. Mas ele contra-argumentava que havia trabalhado na pressa de preservar o que restava das obras musicais coloniais, que eram guardadas em casas de família e logo queimadas. Curt Lange descobriu o século XVIII musical brasileiro, a partir de uma dedução simples: se a arquitetura e escultura mineiras haviam abrigado Aleijadinho e tantos outros mestres, nada mais natural que houvesse compositores do mesmo porte..Saiu a campo, num jipe empresado do governo getulista, e comprovou a tese. Prestou um serviço incomparável à cultura brasileira no plano da musicologia. Não mereceu mais que notas de falecimento na imprensa. É preciso compreender sua importância, nem que seja sob o embalo de um CD que inconscientemente o celebra.

Nascido em Eilenburg, Alemanha, em 12 de dezembro de 1903, Curt Lange estudou musicologia com Erich von Hornbolstel e Curt Sachs. Regência, aprendeu co Arthur Nikish (1855-1922), discípulo de Wagner. Mudou-se de Bonn para Montevidéu em 1930, a convite do governo uruguaio. Fundou lá a rádio do governo e, de 1930 a 1948, dirigiu a Discoteca Nacional. Fundou a divisão de musicologia do Instituto de Estudos Superiores, introduzindo assim a disciplina na América do Sul. Criou em 1933 o movimento Americanismo Musical, que reuniu especialistas, alunos e professores. O movimento reultou na I Conferência Ibero-Americana de Música, sediada em Bogotá, em 1938, e outros eventos desse porte. No Brasil, ajudou a criar o I Festival Interamericano de Música, entre 1933 e 1946, e fundou as discotecas públicas de Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte. Colaborou com Mário de Andrade na criação da Discoteca Pública Municipal de São Paulo. Em 1935, deu início à publicação do Boletin Latino-Americano de úsica e , em 1942, ao lado de Hans Joachim Koellreutter a revista ``Música Viva´´.

Suas pesquisas em Minas se iniciaram em 1939. Mas só e 1944 ele obteve um veículo para se aventurar pelas montanhas mineiras. ``A única coisa que ganhei foi aquele jipe´´, contou. ``Eu batia de porta em porta para perguntar às viúvas dos netos dos compositores se havia sobrado alguma coisa do marido. Elas me apresentavam baús cheios de preciosidades. Eu ia oferecendo dinheiro e salvando a papelada da fogueira -hábito antigo das viúvas. Assim desobri que a escultura e a arquitetura mineiras coloniais tinham sua contraparte musical. Uma genealogia de músicos mulatos, saídos das irmandades laicas, começava a surgir diante de meus ouvidos: Emerico, Manoel Dias de Oliveira, Inácio Parreira Neves e tantos outros´´. O alemão comprador fez fama em cidades como Prados, Mariana, São João del Rei e Tiradentes. As famílias passaram a procurá-lo, oferecendo mais e mais partituras. ``E o preço aumentou´´, lembrava-se o musicólogo. ``Mas cheguei tarde demais. Quase tudo havia sido destruído´´.

Ainda assim, ao fim dos anos 50, Curt Lange havia reunido milhares de partituras de compositores coloniais brasileiros. Muitas delas ele tratou de emendar e corrigir, segundo critérios hoje questionáveis. Ainda assim, prestou grande serviço às pesquisas na área. Provocou uma corrida do ouro a partituras. Com o material, que levou para o Uruguai, escreveu ensaios e monografias importantes, entre elas ``A Organização Musical durante o Período Colonial´´ (V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Coimbra, 1966), ``Os Ir~mãos Músicos da Irmandade de São José dos Homens Pardos de Vila Rica´´ (Year Book, Interamerican Institute for Musical Research IV, 1968) e ``Os Compositores na Capitnia Geral das Minas Gerais (Revista de Estudos Históricos, Marília, 1965) e ``La Opera y las Casas de Opera en el Brasil Colonial´´ (Boletim Interamericano de Música, OEA, sem data). No fim da vida, ainda se dedicava à restauração de uma ópera pastoral, composta em 1862 pelo governador Valladares.

O grande salto de Lange foi associar sua descoberta material a uma teoria ousada em relação à prática musical da Colônia. ``Os compositores eram todos mulatos porque os portugueses brancos não achavam necessário esse tipo de atividade. Como membros de irmandades religiosas, eles compuseram música funcional para os rituais da Semana Santa´´. Influenciado pelos próprios ideais americanistas, Lange condicionou a questão cultural à étnica e deduziu daí a originalidade da produção. ``Os compositores precisavam se adaptar às circunstâncias. Assim, criaram uma música coral sólida, baseada menos no acompanhamento orquestral do que na articulação das vozes. Autor es como Emerico e Dias de Oliveira criaram obras respeitáveis, originais e atualizadas com a prática musical de Viena, Boêmia e Bávara da época´´. Não suportava comparações entre Emerico e um contemporâneo europeu, um Haydn, por exemplo. ``O que se fez em Minas foi música mineira, com longínquos parentescos europeus´´,disse. ``É um dos momentos mais ricos da cultura americana, comparável à música barroca mexicana e peruana e muitas vezes mais genuína que estas´´. No entanto, refutava qualquer tentativa de apontar nessas obras um traço de brasilidade. Para ele, o nacionalismo não fazia parte deste mundo, em que a música se praticava de acordo com modelos internacionais.

Talvez o musicólogo tenha exagerado no americanismo e colocado na surdina o intercâmbio intenso entre a colônia e Lisboa no fim do sécuo XVIII e desta com Viena e Nápoles. Para cá vinham mestres portugueses, como André da Silva Gomes, mestre-de-capela da Sé de São Paulo na passagem do século XVIII para o XIX. Provavelmente o papel dos brancos foi semelhante ao dos mulatos no desenvolvimento da música.

De qualquer forma, a Coleção Curt Lange constitui hoje o maior patrimônio musical do Brasil-Colônia. Dali saem as partituras para execuções como a do CD do Ars Nova. O programa do disco ainda contempla obras executadas muitas vezes e conhecidas dos especialistas. Emerico se revela um compositor acima da média, dono de um lirismo semelhante ao de Mozart. Manoel Dias de Oliveira chega até a ousar em harmonia. Marcos Coelho Neto, mais tradicional, faz obras que lembram peças boêmias do século XVIII. Tudo isso é sabido. O próximo passo é realizar em som o que Curt Lange fez em suas diversas expedições: descobrir um novo mundo musical em obras esquecidas. Basta seguir as indicações do grande educador alemão.
Luís Antônio Giron