Crítica
Gustav Leonhardt
Teatro Cultura Artística
06/10/1997

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Leonhardt faz recital esotérico e público foge
 
 

É provável que os três recitais que o cravista holandês Gustav Leonhardt deu no Teatro Cultura Artística entre segunda e quarta-feiras não se repitam em futuras temporadas. O músico tem, aos 69 anos de idade, a agenda lotada. É o principal vulto do cravo da segunda metade do século XX. Seu recital de segunda-feira não agradou o público por ser extremamente abstrato e rigoroso. O som seco do cravo William Dowd de 1983, segundo modelo do século XVII, fez com que boa parte do público de assinantes escapasse pela tangente. Leonhardt também se ressentiu com os modos da platéia, incapaz de manter silêncio ou de respeitar regras básicas de comportamento. O pessoal foi chegando no meio de peças ou quando o cravista já estava sentado ao instrumento. O coro de tosses foi contrastante com a sonoridade pequena do cravo.

O repertório se apresentou igualmente esotérico. Foi composto principalmente de peças dos clavecinistas franceses do século XVII -"sauíte em Ré menor" (c.1655), e "Tombeau de Monseieur Blancrocher" (1652), de Louis Couperin (1626-1661); "Suíte em Sol maior" (1689), de Jean-Henri D´Anglebert (1635-1691); e "Suíte em Dó menor", de Antoine Forqueray (1672-1745). O programa se completou com "Tocata nº 9", ambas do alemão Johann Jacob Froberger (1616-1667). Todos mestres que exploraram os recursos virtuosísticos do cravo e da composição específica para o instrumento.

A evasão do público foi providencial, pois criou uma atmosfera íntima apropriada ao espetáculo. O seres normais não estão acostumados ao cravo. Conhecem-no dos discos, onde soa mais "aditivado". Ao vivo, em pau e corda, ele não impressiona. Tem um volume pequeno e um cabedal de timbres muito limitado para o gosto cevado no brilho do piano. O cravo implica quase uma ioga auditiva. É necessário concentrar-se e atentar para as marcas d´água desenhadas com sutileza pelo cravo. Quando o executante é Leonhardt, o conhecimento sobre as obras se faz precioso. Ou seja, convergiu para os recitais de Leonhardt tudo o que o público médio abomina: disciplina, conhecimento, concentração.

Leonhardt é o erudito por excelência. Desde sua estréia em Viena, em 1950, interpretando revolucionariamente a integral da "Arte da Fuga", de Bach, ele criou em torno de si uma confraria de seguidores. Faz o papel de chefe da mais ortodoxa das correntes da música histórica atual. De suas lições na Schola Cantorum Basilienses, na Suíça, onde estudou e leciona eventualmente até hoje, saíram todos os grandes maestros de "instrumentos de época". Foi ele, e ninguém mais, quem demonstrou a pertinência absoluta do cravo para interpretar a obra de Bach, por meio de um famoso ensaio sobre a "Arte da Fuga", publicado em 1952; criou condições para a formação de diversos conjuntos barrocos desde os anos 50 (em 1955, criou o Leonhard Ensemble, gérmen de todos os outros grupos com instrumentos originais); chamou atenção para a necessidade da pesquisa musicológica quando se trata de abordar a música anterior ao Romantismo. Em 1967, ele chegou a atuar no cinema, como Johann Sebastian Bach, no filme "Crônica de Anna Madalena Bach" (1967), do cineasta francês Jean-Marie Straub. Não se submeteria ao papel se não fosse pela causa da música histórica e sobretudo da música de Bach. Leonhardt é um mestre.

Comportou-se como um nobre ao longo do concerto. Mostrou austeridade nos gestos e na técnica, mas não tapeou a fantasia. Ao contrário de seus epígonos, ele possui uma imaginação fértil e nunca evita a expressão, muito em bora ela se materialize em formas muito peculiares, como o ornamento exato, o equilíbrio das dinâmicas, o dedilhado bonito mas um tanto escorregadio e a capacidade de arrancar a temporalidade das peças. Durante a execução, Leonhardt virava as páginas das partituras como se lesse um livro e o tempo não importasse. Não seguia adiante enquanto não fixasse muito bem o que devia tocar. Aparentes lapsos de memória eram de fato um modo de ler a partitura com vagar e improviso. Este traço criou a maravilha do espetáculo. Leonhardt é um artista tão rigoroso na sua abordagem que não se importa com a continuidade, o "timing" do espetáculo. Espaceja a execução, criando bolhas de silêncio que parecem perguntas ao passado.

Durante o intervalo, em vez de descansar, ocupou-se em afinar o cravo, diante de um grupo de pasmos curiosos, que se acotovelavam para assistir aos movimentos de luthier do cravista. Leonhardt não deu a mínima para o grupo, e muito menos para o público. Só um sujeito muito convicto é capaz da façanha. Gustav Leonhardt não precisa de ouvintes para continuar a ser o maior músico histórico da atualidade. Seu recital foi um monumento à discrição e à sabedoria. Será muito difícil para ele voltar ao Brasil.

Luís Antônio Giron



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