É possível pensar sobre arte em português

Por Luís Antônio Giron

de São Paulo

Raciocínio articulado é ave rara em território brasileiro. A ponto de os únicos pensadores reconhecidos serem os poetas e, mais recentemente, certos pavões assentados em poleiros de ouro na música popular. Para aqueles que crêem só ser lícito filosofar em alemão e postulam o xaxado como repositório do saber, três livros escritos em tempos distintos mostram outra realidade: a reflexão estética ocorre no Brasil, embora de forma dispersa e refratária. Dois desses volumes acabam de ser editados e outro está em preparação. Em conjunto, eles redimensionam a história do pensamento nativo, com suas derrocadas e fulgores efêmeros.

"Arte Brasileira'', ensaio do crítico e romancista carioca Gonzaga-Duque (1863-1911), recebe sua primeira reimpressão (Mercado das Artes, 271 págs. R$ --) desde que foi publicada, em 1888. Introdução e notas são do crítico Tadeu Chiarelli. O volume descortina o tórrido debate artístico que se travava no Rio de Janeiro do século XIX em torno do nacionalismo. Gonzaga -Duque foi um dos primeiros críticos militantes de arte no país. Seu livro caiu no esquecimento, até porque o crítico alterou logo depois as posições ali expressas "Introdução à Estética Musical'' (Hucitec, 146 págs. R$ 18,00) é um livro inédito do escritor paulista Mário de Andrade (1893-1945). O autor esboçou-o em várias ocasiões entre 1925 e 1938 como sistematização didática de seu arcabouçou teórico. O texto foi estabelecido e anotado pela pesquisadora Flávia Camargo Toni, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da Universidade de São Paulo. Ao original datilografado, arquivado por Mário e hoje pertencente ao IEB, Flávia juntou anotações de duas alunas do escritor no Conservatório Municipal de São Paulo, bem como notas de leituras, conferências e apontamentos de aula do próprio Mário de Andrade.

O terceiro texto, também inédito, intitula-se "Arte Explicada do Contraponto''. Escrito em 1797 pelo compositor português André da Silva Gomes (1752-1844), o tratado gozou de enorme popularidade entre as traças, até parte dele ter sido redescoberta por acaso há dois anos, na cidade paulista de Itu, pelo compositor Amaral Vieira. De acordo com o preparador da edição da obra, o musicólogo paulista Régis Duprat, trata-se do mais antigo exemplo de elaboração intelectual em torno da música realizada no Brasil. A publicação em livro deverá acontecer no próximo ano. Não há editora definida. Por enquanto, o manuscrito está sendo preparado e transcrito em computador por três orientandos de Duprat na Universidade Estadual Paulista.

Amor ao conceito

Os pensamentos dos três homens divergem entre si, além do que seus objetos de estudo têm gênese variada. Gomes ocultava o pendor iluminista sob a severidade escolástica. Seu alvo estava em repetir na colônia o saber contrapontístico adquirido no Seminário Patriarcal de Música de Lisboa. Logrou, no entanto, criar uma espécie de proto-estética normativa do classicismo colonial. Gonzaga-Duque, um "enfant terrible'' decadentista, dissecou a arte feita no Brasil do século XVII ao XIX para detectar nela uma radical ausência de caráter. Com singeleza, atribui tal condição ao destino de uma população "beata e vadia''. Seu pessimismo deve muito ao evolucionismo do historiador da arte francês Hyppolyte Taine. Mário de Andrade, por sua vez, dialogou com os musicólogos mais importantes de seu tempo com o objetivo de sistematizar uma estética da música e o própro conhecimento (preparava-se, naquele momento, para ser musicólogo). Deixou sem fim a empreitada. Apesar disso, o texto derruba a idéia repetida na academia de que o escritor pregava um nacionalismo ortodoxo. O texto representa a síntese do pensamento de Mário sobre a arte que ele definiu como a "dos sons em movimento''. Surpreende pela cosmopolitismo de suas convicções, e dúvidas.

Essas personalidades tão diferentes revelam a utopia da ordenação do conhecimento especulativo, tarefa a ser realizada num universo intelectual que se manteve em letargia adâmica por mais de dois séculos.

Fuga do gramático

Não é difícil imaginar uma aula particular de André da Silva Gomes. Tinha formação rigorosa. Não houve compositor colonial que soubesse como ele manejar o estilo fugado. Suas obras -até hoje Duprat coligiu 130- estão vindo à tona aos poucos. São arcaizantes e rígidas, como se Bach lhes fizesse sombra constante. Gomes acumulou as funções de mestre-de-de capela da Sé de São Paulo, de 1774 até o fim da vida, e de mestre régio de gramática latina da cidade entre 1797 e 1801. Nesse período, formou muitos discípulos. Costumava hospedá-los em casa. Elaborou o tratado para ministrar lições.

No início da primeira de suas três seções, Gomes diferencia contraponto de composição. O tom lembra Santo Tomás: "Contraponto é a invenção da harmonia competente a uma, duas, ou mais partes. Composição é a invenção das cantorias competentes a cada uma das partes. Por exemplo. Eu suscito nas minhas fantasias uma cantoria, eis aqui a composição; porém, careço modificada com os preceitos, eis aqui o contraponto; e por conseqüência demonstra, que o contraponto é a invenção dos números harmônicos competentes a todas as partes; e a composição é a disposiçao e realce da cantoria competente a cada uma das partes''.

Apesar do ímpeto normativo, o mestre aconselha adiante que o compositor se nutra de literatura para dar vazão à fantasia: "Na dissertação, que serve de princípio a esta obra, fica após demonstrado quanto é preciosa ao compositor a instrução literária''. Em meio a claustrofóbicas demonstrações técnicas, o gramático abre um postigo à imaginação.

Brasil inviável

Gonzaga-Duque vai pelo contrário. As noções estéticas lhe servem para sair a campo, numa aventura de ferocidade crítica raras vezes empreendida no Brasil. Foi umdos primeiros críticos de arte brasileiros. Pintor amador, colaborou em revistas como "Fon-Fon'' e "Galáxia''. Na armadura iconoclasta, condenou em seus artigos e ensaios todo academicismo, "o sistema métrico das concepções guiadas'', e reduz as obras de alguns pintores a cinzas.

Paralelamente, inaugurou o movimento simbolista no Rio. É autor do romance de idéias "Mocidade Morta'' (1899), que aborda os sofrimentos de um jovem crítico de arte a escrever no deserto cultural fluminense. "Arte Brasileira'' era um item de colecionadores, até a presente edição. O organizador acha que, com a obra, Gonzaga-Duque se colocou no cerne das discussões sobre o nacionalismo. Ele "funda de novo a história da arte brasileira'', nos termos de Chiarelli..

Entretanto, Chiarelli considera o diagnóstico do crítico "preconceituoso e pessimista'', "coerente com a visão negativa que certa parcela da elite intelectual brasileira possuía do país na época''. O fato o teria cegado para certas manifestações, "visíveis nos capítulos internos''. Assim, pensa o organizador, há contradição entre os dois blocos em que a obra se divide. A primeira parte pinta a história do Brasil com cores macabras. A conclusão é tenebrosa: não existe a propalada "escola brasileira'' de pintura porque o Brasil é uma terra de bárbaros inconscientes de si mesmos. O miolo do livro, porém, traz análises muitas vezes construtivas, o que deixaria transparecer a paixão secreta do crítico pelo objeto de análise.

Chiarelli força o argumento. Na realidade, Gonzaga-Duque mostra extrema coerência em suas posições. A relação entre as duas partes da obra é de contrapeso, não de contradição. O fato de se debruçar com atenção sobre a produção da éoca, e encontrar nela um gérmen inventivo, não invalida o diagnóstico pessimista. E este não pode ser reduzido a um vício da elite.

A leitura da obra se revela deliciosa. Gonzaga-Duque afirma que a vinda da Missão Francesa, com a corte portuguesa, prejudicou o progresso da arte brasileira porque substituiu a ignorância barroca do artista colonial pela imitação dos modelos europeus. Tacha de "raquíticas e inúteis'' as telas de batalha de Pedro Américo e Vitor Meirelles. Sobre o quadro "Passagem de Humaitá'', de Meirelles, escreve que a a índole do pintor catarinense, diferente da de Américo, nada tem a ver com retratar guerras. ""Passagem de Humaitá'' não conseguiu mais do que provar um grande conhecimento de perspectiva. Os longes são pintados com saber imenso.'' Manchas e horizontes fazem com que o espectador se esqueça da temática épica do quadro. O veneno de Gonzaga-Duque o distancia enormemente do conservadorismo da elite da época. O crítico profetizou o Brasil culturalmente inviável do século XX.

Prego e ferradura

A geração que sucedeu a de Gonzaga-Duque procurou positivar a selvageria e transplantar para os trópicos a a flor de estufa da "avant garde'' européia. Mário de Andrade se perfilava entre os novos transgressores. Mas sua atuação, como aponta Gilda de Mello e Souza no prefácio à "Introdução à Estética'', dava-se entre o prego da Semana de 22 e a ferradura do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde lecionou de 1922 a 1928, justamente no período que vai da eclosão da Semana de Arte Moderna à publicação do romance "Macunaíma''. Nas pausas do conservatório, a poucos passos do Teatro Muncipal -onde arrancava vaias da elite-. Mário projetava escrever um livro sobre estética musical. Em carta a Drummond, em junho de 1925, justifica-se: "De repente sem mais nem menos escrevendo uma Estética Musical por precisão: curso pra alunos particulares. Escrevendo porque sou incapaz de improviso''.

Orrganizou anotações em uma pasta . Dentro arquivou 64 páginas datilografadas, bem como material manuscrito. Não encontrou ânimo para finalizar a obra, ainda que em 38 a tenha retomado. O que resta surpreende pela clareza.

Copyright Luís Antônio Giron, 1996