Elisa Freixo, uma ponte entre séculos








O clima é ameno na cidade histórica de Mariana, interior de Minas Gerais. A população de 27 mil habitantes parece experimentar a pacatice habitual, exatamente como há 252, quando se tornou sede do bispado de Minas. Depois de um período de esplendor, a cidade curtiu 150 anos de paralisia cultural, sem que algum artista se dignasse a agitar o lugar. O arquivo da cidade é um dos mais ricos do Brasil. Há 600 partituras arquivadas no local. Delas, apenas uma dezena foi restaurada. O órgão da Sé é outro trunfo paroquial. Trata-se de um legítimo Arp-Schnitger, alemão, datado de 1701, o principal instrumento no gênero na América, com 964 tubos, 17 registros, uma extensão de quatro oitavas e dois teclados. Foi trazido de Portugal em 1752. Em 1977, começou a ser restaurado em Hamburgo. Foi devolvido à cidade em 1984. Mariana era um cenário silencioso, a esperar por alguém que a revitalizasse, como tantas localidades mineiras que vivem do turismo acanhado e do fausto ancestral.

O alguém de Mariana aconteceu e atende pelo nome de Elisa Freixo. Ela apareceu para unir os elos da cidade com o passado, praticando música às sextas-feiras e domingos na Sé, como organista titular. Desde a corrida do ouro e do capitão e compositor Manoel Dias de Oliveira (morto em 1813), não se ouvia coisa igual. Mariana possui uma mestra-de-capela, organizadora da vida musical, referência básica, instrumentista virtuose e sensível. É o primeiro músico prático profissional a serviço da cidade desde o periodo colonial. Sozinha, transformou Mariana num pólo artístico. A quietude dos habitantes é só aparente. Eles têm uma intensa programação de recitais e concertos, graças a Elisa -e ao sonoro e fiel escudeiro Arp Schnitger, naturalmente.

Aos 43 anos de idade, sete discos gravados e carreira internacional firmada, Elisa é hoje a maior personalidade musical do Brasil. Ninguém como ela renunciou a uma carreira internacional para se fixar numa cidade erma, geralmente triturador de sonhos artísticos. Devota-se 24 horas à educação de músicos e do público. Nâo houve outro instrumentista capaz, como ela, de tirar todas as conseqüências sonoras do órgão de Mariana. Presta-lhe um serviço diário, constante, conservando-o, solicitando reformas e afinações. Pesquisa os procedimentos históricos de execução e ornamento. Agora, por exemplo, está esperando por um afinador que transponha o órgão do sistema temperado para o mesotônico, restrito porém mais fiel ao estilo do órgão.

A dedicação praticamente a obrigou a amealhar em casa instrumentos históricos de teclado. Hoje possui a melhor coleção do tipo no Brasil: um cravo segundo o meldol Zell de 1724, uma espineta italiana copiada de um modelo do século XVII, um clavicórdio holandês e a vedete absoluta, um fortepiano original de origem e data indefinidas, que ela supõe ser inglês e ter sido construído por volta de 1790. Elisa carrega esses instrumentos de um lado para outro, a bordo de uma camionete que comprou recentemente, para se apresentar em igrejas e espaços culturais das redondezas, ministrar aulas de cravo e alimentar um centro de estudos para música de teclado, que pretende institucionalizar em breve.

Seu apartamento, no primeiro andar de um sobrado não muito distante da Sé, virou centro de peregrinação desde que ela trocou sua cidade natal, São Paulo, por Mariana, em 1988. Gente de todo mundo bate à sua porta para ouvi-la tocar, presenciar suas aulas ou mesmo aproveitar da companhia sábia e agradável. "Recebo umas oitenta pessoas por mês", orgulha-se, a caminhar pelas ruas estreitas e pedregosas próximas à Sé. "Meu freezer está sempre forrado. Deixei de ter vida particular".

Elisa é cumprimentada por onde passa. Anda ligeiro, com um sorriso tranqüilo e o olhar atento a tudo o que acontece pelas ruas. Acostumou-se bem às ladeiras íngremes típicas da região e pretende em breve comprar um sobrado colonial encarapitado em uma delas, como que a sua espera. A mecha branca não esconde o ar jovial, as maneiras desembaraçadas, a gíria paulistana da hora. Está sempre rodeada por gente jovem, entre discípulos, alunos e fãs. Vegetariana e mística, convida os amigos para um almoço no melhor no melhor restaurante da cidade. E pendura a conta, como não faria jamais em São Paulo. "No início, o processo de mudança foi bastante difícil", comenta. "Porque não foi só me transferir de cidade, mas de século. Eu troquei o século XX pelo XIX. Hoje não quero outra vida".

Sua formação está acima de qualquer suspeita. Estudou piano com Sebastian enda e Alberto Salles. Formou-se pela faculdade Santa Marcelina em São Paulo e se especializou em órgão e cravo em Hamburgo (1977-1980) e Paris (1981-1982). "Curiosamente, cheguei a Hamburgo no mesmo ano do órgão de Mariana", conta. "Um colega me falou da existência e da importância do instrumento e fui visitá-lo. Tomei consciência de sua importância e só fui me reencontrar com ele já de volta ao Brasil, em 1984, quando foi reinaugurado em Mariana". Jura que foi destino. Os dois se reencontraram para sempre num concerto que fez em 8 de outubro de 1985, na comemoração de um ano do retorno do instrumento, a convite da Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana. "Tive a sensação de estar tocando em algo muito especial. Também gostei da cidade e da forma como fui acolhida". Aos poucos, Elisa foi se envolvendo com o órgão e se instalando na cidade. Quando se deu conta, já estava com apartamento alugado e um contrato de prestação de serviços com a fundação. Entre seus deveres figuram o serviço litúrgico, o concerto semanal, a manutenção do instrumento, a organização de eventos, o atendimento e recepção a autoridades.

Ainda em 1985, lançou um LP independente com obras de Johann Sebastian Bach, seu compositor favorito, não muito acima do espanhol seiscentista Francisco Correa Arauxo. No início do percurso discográfico, já mostrava alta sabedoria técnica e sensibilidade. No ano seguinte, editaria outro, com mais Bach. Em 1987, o terceiro volume de Bach e outro LP com obras para órgão de Mendelsohn. Marco em sua carreira foi o ciclo de recitais com a obra completa de Bach para órgão, na catedral evangélica em São Paulo, ao longo dos anos de 1988 e 1989. Um evento histórico, ainda não superado na cidade. "Foi minha despedida de São Paulo e a mudança de referencial", lembra-se. "Depois do grande desafio, eu tinha que mudar radicalmente de rumo".

Nada mais radical do que mudar de século. "O convite de Mariana abriu um novo campo para mim. Percebi que poderia realizar uma série grande de experimentos, sem cobranças ou concorrência. O que sufoca as pessoas é a cobrança. Os artistas deixam de produzir, se travam", diz.. Durante um ano, Elisa passava de um século a outro com muita rapidez, indo de Mariana a Belo Horizonte e São Paulo, morando em três lugares ao mesmo tempo. Aquilo a perturbava. "Chegou um momento em que eu não sabia onde estavam minhas roupas, meus livros, meu xale. Precisava me fixar".

Em 1992, gravou na Espanha o CD "Órgãos Históricos Espanhóis" (Auvidis). O disco obteve o "Grand Prix du Disque" e referências elogiosas da crítica internacional. O CD "Órgãs Históricos do Brasil - Volume I", lançado pela Paulus em 1996, constituiu um outro monumento de interpretação. Pela primeira vez, os sons do órgão de Mariana foram reproduzidos em CD. "O disco vende que nem água", jura. Ainda para este ano, Elisa planeja gravar três CDs, dois para o mercado internacional e um para a Paulus. O repertório deverá ser, respectivamente, obras alemãs, repertório ibérico e barroco internacional. Outro projeto que pretende materializar é o da restauração de oito órgãos históricos em Minas.

Elisa chama o órgão de sua "espinha dorsal". "É de onde parto para conhecer o resto da música". Tem-se "desespecializado", como define, partindo para a atividade de recitalista de cravo. "O organista sempre tem dificuldade de ensaiar em órgãos, pois eles pertencem a uma igreja ou a uma instituição e é de difícil acesso. O cravo é uma solução para o problema". A desespecalização representa, na realidade, a universalização da sua arte. Elisa está tocando cravo como nunca, além de estudar as técnicas do clavicórdio e do fortepiano. Dá aulas tanto de órgão como cravo; tem nove alunos daquele e sete deste. Eles formam a "entourage" da musicista, seguindo-a por toda parte.

Sua definição de artista é muito clara: "No Brasil ele não tem função se não for também educador. A gente fala uma língua que atinge muitas pessoas. Nosso dever é tocar para públicos e cicrunstâncias diferentes e tentar interferir no processo de sensibilização das pessoas". Afirma que sua maneira de encarar a arte se modificou por causa da convivência com os marianenses. "Num grande centro, as pessoas vão embora quando concerto acaba. Aqui, elas ficam, você as encontra por todo canto. Comentam, dão idéias, criticam, se manifestam. Isso me permite conhecer o conceito das pessoas antes e depois do espetáculo. Descobri o que o público busca em um concerto e terminei também por interferir nesse processo. Essa possibilidade de troca é maravilhosa".

Em outras palavras, o recital de Elisa nunca termina em Mariana. Não se resume às paredes venerandas da Sé nem às salas locais. Um aluno a visita para cantar modinhas, e o espetáculo segue. Seus projetos acontecem sem pressa. "Não posso me perder. Podemos ficar paralisados pelo excesso de propostas. Tenho horror de assumir uma coisa que não vai ter fim", afirma, como num paradoxo.

Senta-se à espineta para interpretar uma tocata de Frescobaldi. Depois vai passos rápidos à igreja para interpretar a mesma peça ao órgão."Música para mim é o primeiro amor", diz, enquanto passeia as mãos pequenas pelos dois teclados. "O intérprete é um artista menor. Pratica a arte da recriação. Por isso, deve ter respeito ás fontes".

A igreja está em reforma e o órgão, semicoberto por plástico negro, quase não deixa entrever os motivos chineses em dourado, verde e vermelho do tampo e o anjo trombeteiro que se posta no topo, ostentando um misterioso estandarte franciscano. Mesmo com as limitações acústicas, junta gente para ouvir a execução perfeita de Elisa. Em peças de bravura ou tocatas reflexivas, ela sabe extrair do instrumento os timbres mais nítidos e mutantes. Mariana é privilegiada. Hipnotizada, sorve o concerto infinito e sem paredes de uma sacerdotisa da grande arte.

Luís Antônio Giron