"Don Giovanni", o testamento do maestro Solti

 

 

Luís Antônio Giron

de São Paulo

Há muitas versões em CD com a ópera "Don Giovanni" (1787), do compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). A que mais em chamado a atenção nos últimos anos é a dirigida pelo maestro húngaro Georg Solti (1912-1997), lançada recentemente em álbum triplo pela Decca/Polygram. A versão foi gravada no Royal Festival Hall em Londres de 5 a 7 de outubro de 1996, durante temporada da ópera depois de ter estreado no Festival de Salzburgo de 1995. O elenco tem participação de duas das maiores estrelas líricas internacionais: o baixo-barítono galês Bryn Terfel, no papel de Don Giovanni, a soprano norte-americana Renée Fleming, como Donna Anna, e a mezzo irlandesa Ann Murray, como Donna Elvira. A parte instrumental está a cargo da Orquestra Filarmônica de Londres e a vocal do coro London Voices. Morto na França em 6 de setembro de 1997, devido a um infarto, este trabalho foi o último lançado em vida por Solti. Vale como testamento estético do maestro. Sua visão sobre a maior ópera de Mozart possui um sabor perdido de neoclassicismo temperado por um ponto de vista romântico. Sob o ponto de vista musicológico, talvez a abordagem não seja adequada, mas quem se importa com musicologia quando o adultério musical soa brilhante? Solti foi o último regente da escola pós-romântica a se retirar de cena. Dele restam ainda algumas gravações, como a da ópera "Simon Boccanegra", que regeu no Covent Garden em junho de 1997.

A edição de "Don Giovanni" tem qualidade acima da média das disponíveis no mercado. A de Karajan (Deutsche Grammophon, 1986), peca pela busca de efeitos fáceis. A de Harnoncourt (Teldec, 1994) cataloga ornamentos de época. Além da interpretação unificada por uma abordagem clara (Terfel, diabólico, é o principal Don Giovanni da atualidade, e o timbre doce de Renée já fez sua glória), o som da leitura soltiana prima pela limpidez e o livreto contém informações de primeira mão, com o libreto completo e diversos ensaios. O principal dele foi escrito pelo musicólogo americano H.C. Robbins Landon, um especialista em classicismo vienense, autor de "Mozart - Um Compêndio" (traduzido para o português em 1997 e editado pela Jorge Zahar). Ele analisa as formas e os movimentos empregados pelo compositor na feitura da obra e, munido de documentos raros, dá conta de como se deram as primeiras apresentações da ópera no Teatro Nacional de Praga em 29 de outubro de 1787 e no teatro da Corte de Viena, no ano seguinte (curiosidade: a ópera estreou no Teatro São João do Rio de Janeiro em setembro de 1821). Detalha, por exemplo, a estruturação especular dos movimentos no final do primeiro ato (em onze movimentos), e o movimento modulatório que faz os personagens fugirem da tonalidade básica de Dó menor e maior para distantes, como ré bemol, um recurso avançado para a época, além do uso de dois baixos nos papéis principais (Don Giovanni e Leporello) e de um libreto, elaborado pelo italiano Lorenza Da Ponte a partir da peça de Tirso de Molina, considerado atrevido mesmo para os padrões libertinos da Viena setecentista.

Nas anotações de Mozart sobre suas obras e em publicações da época, Robbins Landon encontrou particularidaddes a respeito da execução e a reação do público à primeira montagem, pela Troupe Guardasoni, em Praga. Guardasoni era o diretor de cena e, segundo o compositor, entendia de atuação e canto. "Por causa dele, a peça tem sido sempre bem apresentada", escreve Mozart. "Pena que sua voz esteja falhando". O relativo sucesso em Praga também se deveu aos baixos Luigi Bassi (Don Giovanni) e Felice Ponziani (Leporello). Na opinião de Mozart, os dois eram grandes cantores e atores, aspecto que valorizava. Não podia dizer o mesmo das irmãs Antonia e Teresa Saporiti (Donna Anna), cujas reputações se arruinaram durante temporada em Leipzig, na Saxônia. Teresa, a mais nova, ficou famosa menos pela voz do que pelo fato de ter provocado um caso passional. Um mercador roubou produtos no valor de mil táleres para recompensar a cantora por favores amorosos. Antonia perdeu crédito por ter voz muito fraca, apesar de afinada. Trinados, gesticulações exageradas e até o comportamento tipicamente italiano dos aritstas eram alvo de comentários na imprensa da época. O público de Praga gostou, mas Mozart reclamou da falta de ensaios e do despreparo dos músicos para dar conta de uma partitura complexa para os padrões do período. Para a montagem de viena, Mozart e Da Ponte (que quase sempre trabalhavam juntos) apostaram no drama. Retiraram o final feliz da versão boêmia e introduziram diversas árias e duetos, como a cena "Mi tradi’, de Donna Elvira e o dueto de Zerlina e Leporello. A obra ficou ainda mais complicada e foi um fracasso. Uma reportagem publicada na época dá conta do burburinho à saída da noite de estréia, que não teve participação do compositor. O público cultivado de Viena não gostou da ópera por achá-la muito difícil. Segundo o texto referido por Landon, durante uma conversa entre connoisseurs, o compositor Joseph Haydn foi convidado a dar opinião. Meio contrariado, respondeu: "Não me satisfiz com o argumento". E acrescenteu energicamente: "Mas de uma coisa eu sei: Mozart é o maior compositor que o mundo possui agora".

Tanto o argumento como a partitura hoje constituem patrimônio universal. A leitura de Georg Solti parece considerar todos os aspectos que vêm embutidos nessa ópera, da partitura à recepção, da execução à interpretação filosófica. O resultado só pode ser uma gravação definitiva, muito diversa da banalização a que está vulnerável a música erudita de hoje. A ópera se apresenta ao ouvinte como que inteira, inclusive com direito à dramatização.