François Lesure escava mistérios de Claude Debussy

 

François LesureO musicólogo francês François Lesure, de 74 anos, é a maior autoridade em Claude Debussy (1862-1918), além de um estudioso da música francesa doséculo XVI e da sociologia da música. Debussy, porém, lhe deu a fama num meio avesso a falsas condecorações. Hoje Lesure figura como verbete no "The New Grove Dicionary of Music & Musicians", editado em Londres por Stanley Sadie, a principal obra de referência musical. Ao longo de sua carreira, ele teve acesso à melhor fatia da documentação pública e privada referente ao compositor francês, mesmo porque trabalhou na seção de música da Biblioteca Nacional de Paris durante 34 anos, até 1991, dezoito dos quais na direção. Diretor de estudos da cadeira de musicologia da École Pratique des Hautes Études, Sorbonne, Paris IV, autor do catálogo completo da obra de Debussy, editor dos "Cahiers Debussy", amigo íntimo de compositores como Pierre Boulez e Philippe Manoury, Lesure esteve na semana passada no Brasil para planejar a edição em português da biografia crítica "Claude Debussy". O livro, publicado em 1994 pela editora Klinsksieck, considerado o ensaio mais completo sobre o músico, sairá em tradução para o português pela Universidade de Sâo Paulo (Edusp ou editora da ECA-USP) no início do ano que vem. A convite da USP, o estudioso fez palestras e participou de atividades acadêmicas, como da avaliação do curso de música da instituição. Gravou também uma série de entrevistas para a rádio USP FM (93.7 mHz), que deverão ir ao ar ao longo do mês de novembro, às terças-feiras, das 22h às 23h, no programa "Tempo de Concerto".

Para muitos especialistas, Lesure tem nas mãos o futuro da obra de Debussy e sua biografia merece a tarja de definitiva. O estudioso nega, com modéstia. Muito sério e cuidadoso nas frases que emite, diz que á musicologia não deve ser uma disciplina destituída de música e vice-versa. "É preciso ser muito vigilante na pesquisa musicológica para não ser indulgente em relação ao seu objeto de estudo e criar um repertório musical puramente musicológico. A música histórica, que traz à tona as obras barrocas, tem muito desse aspecto. A proliferação de obras repetitivas e desinteressante tem sido enorme". Segundo ele, a pesquisa musical deve fazer parte do cotidiano dos intérpretes. Explica que até mesmo o gênero biografia se enriquece com uma possível base científica da musicologia histórica.

"Nenhuma biografia é definitiva", afirma, acendendo uma cigarrilha Davidoff. "A edição em português trará anotações e inclusão de dados que a versão francesa não contém. Ainda há muita coisa para se descobrir no que se refere a Debussy".

Se isso é verdade, Lesure tem obrigação de fazer vir à luz muitas revelações, e o tem feito desde 1960, ano em que começou a se dedicar quase que inteiramente ao projeto de publicar tudo o que o compositor produziu, em escrita musical e verbal. É de Lesure a coletânea "Monsieur Croche e Outros Escritos", publicada em 1980, reunindo toda a produção de Debussy como crítico musical, lançada no Brasil em 1988 com diversos erros. Coordena a "Edition Complète" da produção debussyana, com partituras preparadas criticamente por músicos e especialistas. A edição foi iniciada em 1984 e acaba de chegar ao sexto volume. Lesure prevê um total de 33 tomos.

Para os próximos dois anos, está ocupado em dois projetos. O primeiro é o "Dictionnaire Musicale de Villes de France", um dicionário de cerca de 600 páginas que pretende varrer a história das grandes manifestações musicais francesas fora de Paris. "Recolhi todo o material possível, com a ajuda de equipes de pesquisadores locais. Só para citar um caso, a vida musical nas estâncias de águas foi das mais ricas", explica. "Estudo o fenômeno dos cassinos de beira de praia e de estância hidromineral. Os cassinos abrigavam todo tipo de concerto, recital e até óperas. Houve compositores que escreveram especialmente para os cassinos e alguns deles começaram a carreira como recitalistas nessas casas de jogo, como Maurice Ravel. Outros, como Pierre Monteux, foram maestros de cassinos. É um trabalho extensivo. Mas sempre haverá quem venha reclamar que esta ou aquela cidadezinha não foram citadas".

O segundo plano é editar, até o fim do século, a "Correspondência Completa" de Debussy. A obra deverá sair em três volumes de quatrocentas páginas cada. O tamanho se justifica. O compositor escreveu cerca de 1.600 cartas. Trocou correspondência com todas as grandes personalidades de sua época, além de ter como destinatárias pessoas íntimas. "A obra irá também contemplar a correspondência passiva de Debussy com d´Annunzio, Chausson e Fauré, entre outros", explica o estudioso."É o resultado de 25 anos de pesquisas".

Seduzido pela música do compositor desde os tempos de faculdade (formou-se em História em 1946 pela Sorbonne), Lesure iniciou pesquisa sistemática em 1962, época em que organizou, para a Biblioteca de Paris, a exposição do centenário do nascimento do compositor. Passou a escarafunchar tudo o que se referisse a ele. Então se deu conta que o perfil consolidado do compositor não passava de fantasia. "Descobri que havia um mundo a ser revelado tanto em termos do trabalho musical de Debussy quanto no retrato do homem. Notei que as biografias sobre ele eram romantizadas e não traziam dados fundamentais".

Tratou de juntar as partituras, a coleção de arte e a correspondência, espalhada pelo mundo, na mão de leiloeiros e parentes temerosos de ver o antepassado retomar uma forma humana normal. Lentamente, Lesure foi desmontando o mar de idéias preconcebidas que giravam em torno do mestre francês. A mais difícil de ser removida, a de que Debussy é um compositor impressionista. "Não fui o primeiro a dizer que impressionismo não é um termo adequado para definir o compositor. Fui, porém, o primeiro a dar argumentos definitivos. Na juventude, ele foi simbolista, freqüentou a roda literária dos poetas do movimento e compunha de maneira experimental. Em 1989, foi pela primeira vez a Bayreuth e se encantou com a música da óperas "Parsifal" e "Tristão e Isolda", de Wagner. Depois da ópera e "Pelléas et Melissande" (1902), deu uma virada à direita e lutou pela recuperação da música francesa e do patrimônio nacional. Ele prório não via nenhuma razão para ser intitulado de simbolista. É preciso acabar com essa história de colocar pinturas de Monet em qualquer livro ou disco de e sobre Debussy ".

O pesquisador jogou a pá de cal no tema em 1984, com a exposição "Debusy e a Pintura", que organizou para o Museu do Louvre. Nela, mostrou a ligação profunda que o músico mantinha com a pintura japonesa, do inglês Turner e do americano Whistler. "Este, por exemplo, pintou a série de telas intitulada ‘Noturnos", na qual Debussy se inspirou para escrever os seus famosos ‘Noturnos’. Quanto aos impressionistas, Debussy só manifestou apreço por uma tela de Monet, a única no gênero a ter feito parte da mostra".

A biografia crítica do músico dá um passo radical na alteração do seu perfil. Não é possível hoje falar em Debussy sem considerá-la em profundidade. O livro se beneficia das últimas pesquisas de fontes e do levantamento de testemunhos de época não elencados até então pelos biógrafos. "Um outro benefício é que, com a morte da última herdeira de Debussy nos anos 80 (a enteada do músico, Madame de Tinam, grande obstáculo para os biógrafos porque exigia cortes na correspondência em nome do direito moral ) e a desaparição de família está permitindo que recuperemos a correspondência censurada ou com cortes utilizada pelos biógrafos do passado. Isso permite criar um retrato mais próximo do compositor", diz.

O livro cmpreende documentos inéditos, inclusive fotografias do compositor, família e amantes. Divide-se em 27 capítulos, a maior parte deles organizada cronologicamente em fases da carreira. Começa com a afirmação de que a vida de Debussy não teve nada de romanesca. O objetivo do autor é mostrar uma vida de altos e baixos de um homem no dia a dia, em forma de crônica. O biógrafo estabelece uma distinção entre a juventude e a maturidade do compositor. Assim, segundo ele, os primeiros anos de Debussy foram pautados pelo ideal da arte, as aventuras amorosas e as dificuldades materiais. Com o sucesso de "Pelléas", conquistou o conforto mas se viu sem inspiração. "Depois de 1904, ele parece vítima do sucesso obtido e ao esmo tempo do status social que se impôs e que entrava o desenvolvimento de seus esforços de criatividade", escreve o biógrafo. A frustração artística se associou ao câncer no reto. Passou os últimos anos em sessões de rádio, cirurgias e doses cavalares de morfina, vindo a morrer em 29 de março de 1918. Seu último escrito data, de acordo com levantamento de Lesure, de 31 de dezembro de 1918. É um bilhete inacabado à segunda mulher, Emma Moyse, que diz o seguinte: "Minha querida pequena, os anos se seguem e se parecem -nada de novo e é a época de restrições..."

O destino "um pouco trágico" (palavras de Lesure) de Debussy ainda se reveste de reticências muito parecidas com a música que compôs. A biografia completa algumas lacunas, mas deixa outras ao futuro. Levanta o relacionamento do compositor com seus intérpretes e faz um retrato físico e dos gostos do compositor. Sobre o aspecto físico, há muitas descrições de cotnemporrâneos, como a do escritor Leon Daudet. De acordo com ele, Debustty ostentava a testa de "cachorro da Indochina, o horror ao próximo, um olhar de fogo e a voz um pouco esganiçada". Gostava de beber vinho, fumar, freqüentar restaurantes caros, circos, teatros populares e cafés-concertos . Colecionava gatos e bibelôs. Lesure invoca o poeta Pierre Louÿs para relativizar a fama de conquistador que o compositor gozava em sua época. Segundo Louÿs, Debussy se envolveu seriamente apenas com cinco mulheres. Sobre o assunto, chegou a comentar com o amigo: "É um acaso, mas as cinco eram loiras; eu não sei o que é uma mulher morena".

Depois da conclusão da biografia, Lesure fez novas descobertas a respeito das experiências amorosas do compositor. "Ele tinha uma péssima fama de ter dormido com todas as cantoras e alunas. Mas não foram tantas assim". Diferentemente da lenda, não teve nenhuma aventura com a escultura Camille Claudel nem se encontrou com Wagner em Bayreuth. A publicação da correspondência irá esclarecer mais mistérios. Lesure cita as cem cartas de Debussy à primeira mulher, Lilly Texier, nas quais não fala de música, mas são importantes para entender a personalidade angustiada do música. "O interesse da correspondência com suas mulheres é puramente psicológico. As cartas a Emma são um pouco mais ricas. Ele não foi feliz no casamento. Lilly era mundana demais, queria se divertir e controlar o marido. Não permitiu, por exemplo, que ele viajasse aos Estados Unidos".

Do ponto de vista musical, a correspondência ajuda a compreender o relacionamento conturbado de Debussy com seus intérpretes. "Nela, ficamos sabendo que o maestro italiano Arturo Toscanini foi vaiado na apresentação de ‘Pelléas" no Scala de Milão logo depois da estréia em Paris, e que Debussy não gostava das interpretações de suas obras pelo pianista catalão Ricardo Viñes (1875-1943)". Foi Viñes quem estreou mundialmente "Pour le Piano" (1902), "Estampes" (1904), "Image I" (1906) e "Image II" (1908). Debussy o considerava exagerado e romântico.

Quanto às pesquisas da música propriamente dita de Debussy, Lesure promete a publicação de partituras reescritas pelo compositor e até de inéditos. "Uma das coisas mais surpreendentes é a partitura reescrita de ‘Pelléas’, cuja orquestração está bem modificada. A ‘Fantasia para Piano’, obra de juventude, também mereceu cuidado posterior do músico, pois considerava as edições correntes incompletas e mal-feitas". Ele menciona ainda os dois volumes dos "Prelúdios", para piano, que receberam modificações de figuras rítmicas e compassos. Essas versões ainda estão por sair na coleção das obras completas.

Lesure já está em Paris para preparar um recital com a coleção de canções revistas de Debussy, entre elas uma que descobriu recentemente. Trata-se de "Les Nuits Blanches", para voz e piano, com letra do compositor, composta depois de "Pelléas" . "Com o sucesso da ópera, ele começou a compor de maneira mais dramática e com uma linguagem harmônica menos ousada. A canção recém-encontrada é vincada por tais características". A música deverá ser executada em janeiro de 1998 na sala de música da nova sede da Biblioteca de Paris, ainda em construção. Lesure continua entusiasmado nas pesquisas e não se cansa de enumerar seus achados. "Tenho trabalho para muitas vidas", brinca.

Luís Antônio Giron                     (Gazeta Mercantil, 17/10/1997)    


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