Livros estabelecem cânone da música brasileira

 

 

A musicologia é um dos saberes mais impopulares entre as ciências humanas. A situação não impede que ela seja praticada e dê contribuição de peso para o desenvolvimento da estética, interpretação e história da música. No Brasil, a disciplina tem evoluído de maneira quase espetacular. As descobertas se sucedem e as análises se aprofundam em aspectos cada vez mais abstratos e técnicos. Tanto a musicologia histórica como a analítica vêm-se revelando superprodutivas. Uma e outra não dispensam a consideração do material musical propriamente dito e que na música ocidental é registrado na forma de partitura.

Duas obras pertencentes a cada um dos ramos da musicologia acabam de chegar às livrarias: "Museu Carlos Gomes: Catálogo de Manuscritos Musicais" (Arte Ciência, 415 págs., R$ 23,00), organizado e comentado pela musicóloga paulista Lenita Waldige Mendes Nogueira, e "36 Compositores Brasileiros: Obras para Piano (1950/1988)" (Relume Dumará 336 págs., R$ 36,00), pela professora carioca Salomea Gandelman. São livros de referência que exibem expertise musical, mas não impedem o interessado leigo em arte de enriquecer seu conhecimento com a leitura dos dois grossos volumes. Afinal, música não é uma arte tão misteriosa assim. Possui certamente seus paradigmas, formas, teorias e prática que a apartam da superfície do mundo. Mas tomar contato com o corpo do saber musical pode ser uma maneira de ouvir melhor música. Os dois trabalhos ajudam a estabelecer um repertório de conhecimento válido no que se refere à música brasileira.

O catálogo dos manuscritos do Museu Carlos Gomes faz muito mais do que arrolar títulos da instituição. Ainda que se limitasse a isso, o livro seria recebido com entusiasmo, já que o Museu Carlos Gomes comporta uma das coleções mais completas de música brasileira dos séculos XVIII e XIX, um acervo tão importante quanto a Coleção Francisco Curt Lange, hoje depositada Museu da Inconfidência em Ouro Preto. Fundado em 1954 pelo Centro de Ciências, Letras e Artes, entidade particular de Campinas, o museu compreende duas coleções: a de partituras do compositor Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e a dos manuscritos que foram colecionados desde o princípio do século XIX pelo pai do músico, o também maestro e compositor Manuel José Gomes (1792-1868).

A autora, responsável pela área de documentação e acervo do Centro de Documentação de Música Contemporânea da Unicamp, se debruça sobre a segunda coleção. Maneco Músico, como era conhecido, foi aluno do português André da Silva Gomes (1752-1844). Este mestre-de-capela da Sé de São Paulo atuou na cidade a partir de 1774. Sua obra tem sido interpretada graças ao trabalho do musicólogo paulista Régis Duprat. Uma das primeiras fontes consultadas por Duprat foi justamente a coleção de Manuel José Gomes. O pai de Carlos Gomes conservou com carinho dezenas de obras do mestre, entre muitas outras. Manuel nasceu em Santana do Parnaíba e deu aulas de harmonia e contraponto, na condição de mestre-de-capela da Sé de Campinas de 1815 até sua morte, tinha como obrigação realizar concertos e missas. Houve por bem copiar e arquivar partituras para o uso cotidiano. São centenas de manuscritos de compositores brasileiros e estrangeiros. Sua coleta vai das missas de um compositor "arcaico´´, como José Emerico Lobo de Mesquita, ativo em meados do setecentos, a peças instrumentais do início do século XX. As obras passaram ao filho Sant´Ánna Gomes (1834-1908), igualmente compositor e deste para os herdeiros. A coleção, portanto, guarda uma linha direta com os tempos coloniais e permite visualizar todo uma herança musical. Esta formou Carlos Gomes, o compositor brasileiro mais importante do século XIX.

O livro se divide em catálogo temático e não-temático, sempre em ordem alfabética. Ao primeiro, pertencem obras de importância para a cultura brasileira e traz 379 manuscritos. O segundo contém obras de compositores famosos (inclusive Carlos Gomes) e peças circunstanciais. Cada verbete da primeira parte vem organizado com título da partitura, instrumentação, origem e data do documento, além do incipit (compassos iniciais da partitura) e descrição da seqüência da obra, com andamento, tonalidade e número de compassos. A autora comenta a maior parte das obras, sem deixar de fornecer dados biográficos dos compositores.

A aparência de aridez se desfaz no instante em que a obra é folheada. A riqueza musical do século XVIII e XIX torna-se quase um escândalo, pelo fato de ser tão desconhecida e pouco tocada. As partituras formam um cabedal estético, em que o "de" e o "por", o proprietário da partitura e o compositor, quase se confundem. Maneco não pareceu se mover por gosto pessoal ou por simpatias. Praticamente todo o repertório tocado no início do Brasil figura ali. Há desde credos e ladainhas dos mestres-de-capela e músicos da Capela Real (mais tarde Imperial) de dom João VI e Dom Pedro I, como Fortunato Mazzioti (?-1855), José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) e Pedro Teixeira de Seixas (?-1832), até obras tardias e nunca executadas, por Sant´Anna Gomes. Um exemplo destas últimas é a ópera "Alda". O libreto, em italiano, de Emilio Ducatti. Segundo a pesquisadora, foi enviado por Carlos Gomes da Itália. É uma trama rocambolesco envolvendo os personagens Alda, Lida e Sambo. Sant´Anna Gomes completou a peça, em quatro atos, em 1906, mas não teve tempo de levá-la à cena, apesar de ter recebido dinheiro do governo para produzi-la. A morte interrompeu também a composição da ópera "Semira", também em italiano. Restou deste projeto apenas um dueto para soprano e tenor, que encerraria o primeiro ato.

Entre os compositores estrangeiros que exerceram influência no Brasil, integram a coleção os italianos David Perez (1711-1778), mestre napolitano, com quatro obras, inclusive o "Credo a Quatro Vozes", e Giuseppe Pacini (1796-1867), com o`"Credo para Grande Orquestra", muito executado na década de 1850 no Brasil. Pacini, aliás, compôs especialmente para Imperial Teatro de S. Pedro a ópera "Niccolò de Lapi", em 1857. Uma cavatina desta obra, aliás, figura inexplicavelmente no catálogo não temático, como se não constituísse um item fundamental. Um engano suplementar está em referir o compositor Christiano Stockmeyer (grafado erradamente como "Stohmeyer") no rol dos desimportantes. Carioca, Stockmeyer compôs obras de relativo peso na década de 1850 e foi responsável pela propagação do repertório alemão no Brasil. Em 1854, por exemplo, ele regeu pela primeira vez no Brasil o "Concerto em Dó Menor", de Beethoven. Este compositor, aliás, não está na coleção de Gomes, assim como Bach, Haendel e Schubert. Sua contribuição ainda está por ser resgastada.

Se o catálogo servir como prova, Carlos Gomes deve ter-se nutrido de música italiana e colonial brasileira. O estilo das obras da coleção é simples, com tonalidades básicas, instrumentação pobre e quase todo forjado no estilo italiano, muito embora os compositores coloniais brasileiros ostentassem alguma originalidade em termos de melodia e instrumentação. É difícil, no entanto, encontrar traços de uma "brasilidade" no repertório de Gomes e filhos. A característica comparece nas anotações à margem de algumas partes referidas por Lenita, como do segundo violino da "Missa" do compositor mineiro João de Deus de Castro Lobo (1794-1832). Um violinista gaiato escreveu assim em sua parte: "Pelo P. João de Deus/ Cubas da Gama que de noite pesca/ de dia escama". No Brasil, música erudita e cultura popular sempre estiveram presas uma à outra. O livro cumpre uma função importante para quem quiser traçar a história da música brasileira do novecentos sem se prender a idiossincrasias. Pela coleção de Maneco, ela se revela ingênua e rica. A obra de Lenita Nogueira dignifica a musicologia histórica.

Dentro linha analítica, "36 Compositores Brasileiros" aborda um período muito posterior, de 1950 a 1988, que representa a libertação da composição pianística local dos liames nacionalistas e modernistas. A história traçada por Salomea Gandelman, professora da Uni-Rio, é bem outra, com métodos também distintos. Em vez de um catálogo temático, ela apresenta a obra para piano solo, dois pianos e piano a quatro mãos de 36 compositores em forma de análise estrutural. A escolha do repertório não teve nada de pessoal. Para fazê-lo, utilizou um critério aceitável: verificou os programas da Bienal de Música Contemporânea do Rio de janeiro e do Festival de Música Nova de Santos, os dois eventos mais prestigiosos de música contemporânea do país. Dali extraiu os nomes de 82 compositores cujas obras aparecessem pelo menos duas vezes. Embora o critério de execução seja controverso, serve pelo menos para configurar os nomes mais prestigiados ao longo de 38 anos. Os mais importantes estão citados: Ernst Widmer, Almeida Prado, Edino Krieger, Guerra-Peixe, Jorge Antunes, Cláudio Santoro, Bruno Kiefer, Lindembergue Cardoso, Marlos Nobre, Willy Correa de Oliveira, Ricardo Tacuchian, Ronaldo Miranda e Gilberto Mendes. O trabalho mais intenso consistiu em encontrar as partituras, quase todas ainda não publicadas, apesar da idade e da consolidação que obtiveram. Um apêndice útil seria o que transcrevesse essas obra, ou, pelo menos, parte delas.

As obras são descritas e analisadas a partir de suas características composicionais e exigências pianísticas básicas. Nas palavras da autora, o alvo foi descobrir as premissas de cada composição e "decidir que dados analíticos seriam mais esclarecedores na busca de decisões de natureza interpretativa".

A análise das obras beira o esquematismo. Nela, porém, é possível descobrir a fisionomia de músicos que o público ainda não conhece e que formam uma herança cultural das mais estimulantes. Salomea presta um serviço aos intérpretes, poupando-lhes o trabalho de análise das condições de composição de cada obra.

A produção pianística de alguns compositores é constante e sugere uma evolução estilística. É o caso de Gilberto Mendes (1922-), Osvaldo Lacerda (1927-), Ernst Widmer (1927-1993) –referido sem data de morte no volume- e Ernst Mahle (1929-). Esses músicos apresentam uma obra orgânica e constante no âmbito do piano, exibindo uma criatividade tão intensa que é complicado descrever-lhes o estilo. São dados a liberdades e libertinagens tonais, utilização de clusters e a recaídas líricas. Alguns, como Lacerda, nunca se libertam do nacionalismo, embora possua, uma cultura musical extensa. Outros praticam um universalismo que os conduz a situações curiosas, como Mahle, que em 1969 escreveu o ciclo "As Músicas de Cecília", a partir, segundo o texto de apresentação da partitura, de harmonizações "de algumas das 1.300 melodias inventadas pela filha mais velha do compositor, na idade entre dois e seis anos". Ainda mais curiosa é a peça "Vers les joyeux tropiques, avec une musique vivante, theatrale", composta em 1988 por Gilberto Mendes. Salomea descreve-a com vivacidade: "Alusão bem humorada, através do título, a Tristes trópicos de Lévi-Strauss. Peça de caráter minimalista. Harmonias ‘debussyanas’. Utilização de ritmos de tango, rock, iê-iê-iê e bossa–nova". A coorte de excentricidades é numerosa e torna divertida a leitura de uma obra quase esotérica.

A musicóloga afirma que o conjunto de obras abordado é heterogêneo, variado e pouco ortodoxo. Os compositores são levados a cometer progressos, paradas súbits e espantosos retrocessos e se sujeitam a "influências de ordem social, psicológica, ideológica, política e estéticas". Empregam recursos técnicos e composicionais praticamente infinitos: "Combinam-se livremente tonalismo, modalismo, atonalismo livre, folclore infantil, rural, influências da música popular e aleatorismo; estruturalismo, via serialismo, dodecafonismo, séries matemáticas, trabalho sobre intervalos, motivos e minimalismo são amplamente explorados; citações, autocitações, citações de estilos, efeitos cênicos são numerosos em alguns compositores".

A autora Conclui que tamanha pluralidade combina com o conceito de pós-modernidade, já que os compositores analisados superaram a polaridade universal-nacional, tradição-renovação e usaram de todo tipo de recurso cosmopolita e policultural.

Não parece provável que a musicologia venha um dia a gozar da popularidade de uma psicanálise ou lingüística. Seria de utilidade pública, no entanto, divulgar mais as obras desse setor do conhecimento. Livros do porte de ``Catálogo de Manuscritos Brasileiros" e "Compositores Brasileiros" enriquecem qualquer inteligência que se devote à cultura.

Luís Antônio Giron


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