Críticade musica

CD revela inclinação popular de Carlos Gomes

O compositor Carlos Gomes
O compositor Carlos Gomes


Carlos Gomes




O CD "Carlos Gomes: Modinhas, Duetos, Árias, Sonatas para Quarteto de Cordas" (Instituto Cultural e Filantrópico Alcoa) é um dos escassos acontecimentos concretos em torno da celebração do centenário da morte do compositor campineiro Antonio Carlos Gomes (1836-1896) e um motivo para repisar no tema. Porque cada vez que ele for retomado, mais ficará evidente a indigência da cultura brasileira.

Produzido no ano passado e lançado no início deste, a tiragem de 3 mil exemplares do CD está sendo distribuída por escolas de música, instituições de pesquisa e universidades. É o sétimo volume da "Coleção de Música Erudita Brasileira", produzido pela Alcoa. A série teve início em 1989 e compreende registros de qualidade e importância artística, como os "Trios n.º 1 e 3" de Villa Lobos, pelo Artistrio, os "Quartetos", de Radamés Gnattali, pelo Quarteto Bessler-Reis, e as obras para piano de Alberto Nepomuceno, por Miguel Proença. São gravações que nem mesmo a Funarte -órgão que deveria ter obrigação de realizar esse serviço- ousou produzir e lançar. Alguns desses CDs têm sido editados comercialmente. Espera-se que alguma gravadora tenha a boa idéia de lançar o novo trabalho.

"Carlos Gomes" compreende interpretações de peças pouco divulgadas do autor, além de duetos e árias de óperas famosas, pelo tenor Fernando Portari, as sopranos Maúde Salazar e Laura de Souza, o barítono Inácio de Nonno e os pianistas Samuel Kardos e Larry Fountain, além do Quarteto de Brasília. Entre as partituras desconhecidas encontram-se a modinha "Suspiro d´alma" -escrita em Campinas, quando o artista tinha 21 anos de idade, antes do início de sua carreira como autor de óperas, que o levaria a ser condecorado por Dom Pedro II e enviado para estudar na Europa-, a canção "Mon bonheur", de 1882, sobre poema de Julie Césarine, e "Sonata para cordas" (1854), uma das raras incursões de Gomes pela música de câmara. O texto do livreto, a cargo do crítico Lauro Machado Coelho, contém dados completos sobre as composições e o contexto da sua criação na carreira do músico.

O CD evidencia mais uma vez a falsidade da imagem consagrada do músico como um sul-americano aculturado na ópera italiana. O pendor popularesco do compositor se materializa nos meneios modinheiros de "Quem sabe?!", canção baseada na letra de Francisco Leite de Bittencourt Sampaio e sucesso nos salões e coretos do Segundo Império desde o seu lançamento em partitura, em 1854. Machado Coelho menciona que a modinha, praticada nos salões, tinha pretensas raízes no lundu. A associação, no entanto, peca pela imprecisão. A modinha tem suas origens no canto europeu e corre paralela ao lundu, um gênero mais jocoso e com ritmo sincopado, este sim, vincado na africanidade. Em muitas obras Carlos Gomes deixou transparecer a síncope, em lundus que escreveu no tempo em que produzia as modinhas. A ligação com os ritmos populares se faz sentir no quarto movimento da "Sonata para cordas" , um "vivace'' que foi intitulado de "O burrico de pau" por se inspirar num tema folclórico.

Ao chegar à Itália em 1864, ainda era perseguido pela temática e o espírito brasileiros. Note-se que em 1866, quatro anos antes de estrear a ópera "Il Guarany", no Scala de Milão, Carlos Gomes fez a música para a revista "Se sa minga", com texto de Antonio Scalvini, estreada em 1.º de janeiro de 1867 no Teatro Fossari de Milão, com grande sucesso. O musicólogo Vasco Mariz, na "História da Música no Brasil", conta que, logo depois da estréia da revista, os realejos milaneses já tocavam duas músicas de Gomes que faziam grande sucesso: o coro das máscaras e a canção "Fucile ad Ago'". A rainha do corta-jaca, a maestrina Chiquinha Gonzaga, compôs uma peça pianística baseada nesta última ária, para ser tocada nos bailes de maxixe da Cidade Nova do Rio de Janeiro. Antes de se embrenhar na ortodoxia do bel cano, Carlos Gomes inaugurou o gênero alegre na Itália e ajudou a lançar o maxixe no Rio. Em 1868, ainda antes de "Il Guarany", fez estrear no Teatro Carcano outra revista de Scalvini, "Nella Luna". Mais uma vez, canções como "A Moda", "O Recibo" e o "Coro das crianças lactantes" (que sucesso não faria hoje!) foram a sensação da temporada. Todo essa faceta revisteira e burlesca de Gomes permanece inexplorada pelos musicólogos. Um pouco dela o CD faz entreouvir, bem como o lado rigoroso do compositor que, a paritr de 1870, passou a se devotar ao melodrama italiano, sem desejar mais deixar transparecer traços brasileiros, mas cometendo pecadilhos aborígines aqui e ali.

As interpretações do CD são de boa qualidade, embora o acompanhamento de piano não faça jus à orquestração original de músicas como a ária "Ahimé!... Dove sono?" da ópera "Fosca", estreada no Scala em fevereiro de 1873, depois do êxito de "Il Guarany". A ópera foi mal recebida e caiu no esquecimento, mais pelo libreto do que pelas invenções modulatórias da partitura. As três árias da ópera "Lo Schiavo" (Rio de Janeiro, 1889) -"La stella dell' amor...'', por Inácio de Nonno, um barítono de alta potência e dicção clara, e "Come serenamente" e "Oh ciel di Parahyba", pela soprano Laura de Souza, em abordagem virtuosística e convincente- lembram recitativos hesitantes entre a melodia e a declamação O tenor Portari também exibe dotes artísticos invejáveis na leitura carregada das árias e modinhas. Talvez pudesse impostar menos a pronúncia em "Suspiro d' alma". . Todas essas canções são peças que merecem ser conhecidas pelo público e os especialistas.

Apesar da recente má recepção internacional de Gomes com a estréia de "Il Guarany", em Washington em outubro de 1996, com regência de John Neschling, sua obra ainda deve passar por um julgamento mais denso. Tachá-la de medíocre ou de bizarra, como o fizeram os críticos norte-americanos, soa como leviandade. Mesmo porque ela não se fez conhecer em sua inteireza. Tudo indica que Carlos Gomes foi mesmo o maior compositor americano do século XIX. O CD da Alcoa fornece material para que se alterem as idéias adquiridas a respeito do músico..

Luís Antônio Giron

Copyright Alétheia Editora, Luís Antônio Giron, 1997