Entre lágrimas e cotoveladas

Daniela Name

 

"No lugar da Ave-Maria e do Pai-Nosso, uma cantilena de "Tempo perdido",
"Eduardo e Mônica" e "Monte Castelo", repetida dezenas de vezes pelos fãs de
Renato Russo na porta do crematório do Caju. Era uma manhã de sábado e O
GLOBO era o único jornal que tinha chegado cedo, na esperança de entrevistar
os outros integrantes do Legião Urbana ou alguém da família do compositor. 

"O Dia" e "O Fluminense" chegaram mais tarde, engrossando conosco o exército
de repórteres de rádio e TV. Assistíamos à missa de corpo presente pelas
frestas da parede e comungávamos uma certeza: nosso trabalho tinha acabado
ali, na anotação do ritual. Talvez por isso pouca gente tenha dado atenção à
mulher magrinha, baixa, de óculos escuros, que abriu o portão do crematório
para agradecer a presença dos fãs.

Os adolescentes suados, que tinham virado a noite no Caju, fizeram um cordão
de isolamento em torno de Maria do Carmo Manfredini, mãe de Renato. Cheguei
perto dela aproveitando as cotoveladas de um gordo alto no resto da galera,
mas poucos conseguiram uma carona igual. 

Não se pode esperar palavras coerentes de uma mãe que acaba de perder o
filho de Aids - e um filho jovem, inteligente e carinhoso com a família. Mas
dona Maria do Carmo disse várias. Começou respondendo minhas perguntas
óbvias sobre inéditos do grupo. Emocionada sem chegar ao desespero, negou a
Aids anunciada pelo médico Saul Betsche, alegando que o filho tinha morrido
de anorexia nervosa, mas falou espontaneamente que Renato tinha desistido de
viver. 

E fez isso dando voz ao filho morto, reproduzindo os diálogos que tinha com
ele: "‘Júnior, vai jogar bola, vai namorar"’ Ele ria baixinho e dizia: ‘Não
adianta, mãe, eu sou diferente". Não estava falando mais do compositor
controverdito, depressivo, transformado em mito da noite para o dia.
Revelava o garoto tímido da Ilha do Governador, que se dizia ateu, mas era
devoto de São Judas Tadeu e morreu com uma medalha de Nossa Senhora
Aparecida no peito. 

Explicava que o garoto sensível virou um adulto atormentado: "Nos últimos
tempos, não cansava de repetir: ‘Mãe, eu não sou daqui’. Sempre foi muito
atormentado, sofria profundamente até com guerras na Conchinchina". Já era
muito para quem acreditava que ia escrever um texto corrido sobre os fãs
chorosos, mas tive coragem de fazer uma última pergunta: "A senhora acredita
que seu filho foi feliz?". Ela podia titubear, alegar cansaço, soltar um
desaforo. Mas falou a coisa mais triste e bonita que ouvi nos últimos
tempos: "É duro dizer isso, mas tenho certeza que não. Uma vez ele me disse:
‘Mãe, eu só fui feliz na infância"’.

A coragem de Dona Maria do Carmo mostrou que a reportagem às vezes não
termina no que é visto pelas frestas da parede. Emocionou fãs e alguns
fotógrafos, levou um cameraman às lágrimas. E me fez agradecer intimamente
ao gordo alto, com suas abençoadas cotoveladas."