Carlos Drummond de Andrade

Amar

Que pode uma criatura senão,
Entre criaturas, amar?
Amar e esquecer,
Amar e malamar
Amar, desamar, amar?
Sempre, e até de olhos vidrados,
Amar?
Que pode, pergunto, o ser
Amoroso,
Sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
(...)
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
Amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


Aspiração

Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição,
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição humano e alma.


As sem razões do amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.
Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga, nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.
Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


A Um Ausente

Tenho razão de sentir saudade,

tenho razão de te acusar.

Houve um pacto implícito que rompeste

e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.

Detonaste a vida geral, a comum aquiescência

de viver e explorar os rumos de obscuridade

sem prazo sem consulta sem provocação

até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.

Teu ponteiro enlouqueceu, enlouqueceu nossas horas.

Que poderias Ter feito de mais grave

do que o ato sem continuação, o ato em si,

o ato que não ousamos nem sabemos ousar

porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,

De nossa convivência em falas camaradas,

simples apertar de mãos, nem isso, voz

modulando sílabas conhecidas e banais

que eram sempre a certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.

Sim, acuso-te porque fizeste

o não previsto nas leis da amizade e da natureza

nem nos deixaste sequer o direito de indagar

porque o fizeste, porque te foste.


Balada do Amor Através das Idades

Eu te gosto, você me gosta

desde tempos imemoriais.

Eu era grego, você troiana,

troiana mas não Helena.

Saí do cavalo de pau

para matar meu irmão.

Matei, brigamos, morremos.

Virei soldado romano,

perseguidor de cristãos.

Na porta da catatumba

encontrei-te novamente.

Mas quando vi você nua

caída na areia do circo

e o leão que vinha vindo,

dei um pulo desesperado

e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,

flagelo da Tripolitânia.

Toquei fogo na fragata

onde você se escondia

da fúria do meu bergantim.

Mas quando ia te pegar

e te fazer minha escrava,

você fez o sinal da cruz

e rasgou o peito a punhal...

Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)

fui cortesão de Versailles,

espirituoso e devasso.

Você cismou de ser freira...

Pulei muro de convento

mas complicações políticas

nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,

remo, pulo, danço, boxo,

tenho dinheiro no banco.

Você é uma loura notável,

boxa, dança, pula, rema.

Seu pai é que não faz gosto.

Mas depois de mil peripécias,

eu, herói da Paramount,

te abraço, beijo e casamos.


José

E agora, José?

A festa acabou,

a luz apagou,

o povo sumiu,

a noite esfriou,

e agora, José?

e agora, você?

você que é sem nome,

que zomba dos outros,

você que faz versos,

que ama, protesta?

e agora, José?

Está sem mulher,

está sem discurso,

está sem carinho,

já não pode beber,

já não pode fumar,

cuspir já não pode,

a noite esfriou,

o dia não veio,

o bonde não veio,

não veio a utopia

e tudo acabou

e tudo fugiu

e tudo mofou,

e agora, José?

E agora, José?
Sua doce palavra,

sua gula e jejum,

seu instante de febre,

sua biblioteca,

sua lavra de ouro,

seu terno de vidro,

sua incoerência,

seu ódio – e agora?

Com a chave na mão

quer abrir a porta,

não existe porta;

quer morrer no mar,

mas o mar secou;

quer ir para Minas,

Minas não há mais.

José, e agora?

Se você gritasse,

se você gemesse

se você tocasse

a valsa vienense,

se você dormisse,

se você cansasse,

se você morresse...

Mas você não morre,

você é duro, José!

Sozinho no escuro

qual bicho-do-mato,

sem teogonia,

sem parede nua

para se enconstar,

sem cavalo preto

sua gula e jejum

você marcha, José!

José, para onde?


Lembrete

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.


No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.


Quadrilha

João amava Tereza que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi para os Estados Unidos, Tereza para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

Que não tinha nada a ver com a história.


(...)
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? No trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
Na consoante?
No poço?
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
(...)


O homem deitado

Não se levanta nem precisa levantar-se.
Está bem assim. O mundo que enlouqueça,
o mundo que estertore em seu redor.
Continua deitado
sob a racha da pedra da memória.


O AMOR BATE NA AORTA
Cantiga do amor sem eira nem beira,
vira o mundo de cabeça para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.
Meu bem, não chores,
Hoje tem filme de Carlito!
O amor bate na porta
O amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.
Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.
Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.
Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...


O Mundo é Grande

O mundo é grande e cabe
Nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
Na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
No breve espaço de beijar.


O pequeno cofre de ferro

Arrombado
vazio. Quem roubou?
Eu, talvez,
que me acuso de todos os pecados
antes que ninguém me acuse e me condene.
Não fui eu ou fui eu?
Quem sabe mais de mim do que meu dentro?
E meu dentro se cala
omite seu obscuro julgamento
deixando-me na dúvida
dos crimes praticados por meu fora.


Perguntas em forma de cavalo-marinho

Que metro serve
Para medir-nos?
Que forma é nossa
e que conteúdo?
Contemos algo?
Somos contidos?
Dão-nos um nome?
Estamos vivos?
A que aspiramos?
Que possuímos?
Que relembramos?
Onde jazemos?
(Nunca se finda
nem se criara.
Mistério é o tempo,
inigualável.)


Segredo

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.
Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance do nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.
Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.
Suponha que um anjo de fogo
varresse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.


Sentimental

Ponho-me a escrever teu nome

com letras de macarrão.

No prato, a sopa esfria, cheia de escamas

e debruçados na mesa todos contemplam

esse romântico trabalho.

Desgraçadamente falta uma letra,

uma letra somente

para acabar teu nome!

Eu estava sonhando...

E há em todas as consciências, um cartaz amarelo:

"Nesse país é proibido sonhar."


Sociedade

O homem disse para o amigo:

e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa

e quando o homem chegou com a mulher,

soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.

A mulher bebeu e cantou.

Os dois dançaram.

O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,

o amigo disse para o homem:

E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmungava:

E a mulher ajunta: – Que idiota.

O piano e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras

eles voltam à casa do amigo

que ainda não pode retribuir a visita.


Tristeza no Céu

No céu também há uma hora melancólica,
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.
Os anjos olham-se com reprovação
e plumas caem.
Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.
Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.


Toada do Amor

E o amor sempre nessa toada:

briga perdoa perdoa briga.

Não se deve xingar a vida,

a gente vive depois esquece.

Só o amor volta para brigar,

para perdoar,

amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele, também

Que graça que a vida tinha?

Mariquita, dá cá o pito,

no teu pito está o infinito.


Verbo Ser

Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor. Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três. E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce? É terrível, ser? Dói? É bom? É triste? Ser; pronunciado tão derpressa, e cabe tantas coisas? Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R. Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a? Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser Esquecer.


O tempo passa? Não passa.

"O tempo passa? Não passa

no abismo do coração

lá dentro, perdura a graça

do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz

a um só verso e uma rima

de mãos e olhos, na luz.

O tempo é todo vestido

de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu

transcedem qualquer medida.

Além do amor, não ha nada,

amar é o sumo da vida.

Pois só quem ama escutou

o apelo da eternidade".