ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO

(1800-1875)


O ACALENTAR DA NETA

Dorme, dorme, minha neta,
Senão não sou tua amiga;
Dorme que eu te embalo o berço,
E te canto uma cantiga.

Vai a bela Dona Ausenda
Caminho de Palestina,
Leva trajo de romeiro,
Com seu bordão e esclavina.

Dona Ausenda, Dona Ausenda,
Em sabendo que és fugida,
Tua mãe cairá morta,
E tuas irmãs sem vida.

Pouco importa a Dona Ausenda
Quem na Espanha morra ou viva;
Vai em busca de sua alma,
Que em Palestina é cativa.

De lá lhe vieram cartas,
E uma carta lhe dizia:
"Teu amigo, Dona Ausenda,
"Chora de noite e de dia.

"As cadeias não lhe pesam;
"Pesas-lhe tu, porque cisma
"Que há-de morrer sem mais ver-te,
"Nem ver-te quer na moirisma."

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
Ao pé da Virgem Maria.

Vendeu jóias e arrecadas,
Comprou bordão e esclavina;
E trajada de romeiro
Já demanda a Palestina.

Vai pedindo pelas portas,
Por sóis e chuvas caminha;
Trabalhos não a quebrantam,
Com eles vai mais azinha.

Uma tarde, era sol posto,
Quando avistou uma ermida;
Era de Nossa Senhora;
Mãe dos homens se apelida.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
Mercê da Virgem Maria.

Os socos descalça, à porta,
E ajoelha com fé viva,
Pedindo que lhe restitua,
Sua alma que jaz cativa.

Os olhos da Virgem Santa
Deram mostras de afligida;
Ergueu-se um vento da serra...
Que toda tremeu a ermida.

Coitada de Dona Ausenda,
Mais triste sai, do que vinha.
Cerrou-se-lhe logo a noite;
E ela nos bosques sozinha!

Queria andar, e não pôde,
Que o grande escuro a tolhia;
Necessitava encostar-se,
Tinha medo, e não dormia.

Numa raiz poisa a face,
O corpo em folhas reclina,
Com suas penas conversa,
Coitada da peregrina!

"Perdi a terra e o palácio,
"Perdi a mãe que lá tinha,
"Perco-me agora a mim mesma,
"E o que procurando vinha.

"Dom Giraldo, Dom Giraldo,
"Só a fé não é perdida,
"Pois tu sabes que eu te adoro,
"E eu sei como sou querida.

"Peço ao meu Anjo da Guarda,
"Se hei-de aqui ficar perdida,
"Que vá levar-te por sonhos
"Esta minha despedida."

Assim dizia a formosa
Dona Ausenda de Molina;
E ao dizer Anjo da Guarda,
Lembrou-lhe a irmã pequenina.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
E sou da Virgem Maria.

Então dos olhos cansados
Lhe borbotou a dor viva,
E ouviu folhas abanadas,
E viu uma luz esquiva.

Logo para aquela parte,
Porque o pavor a conquista,
Em joelhos, com mãos postas,
De relance estende a vista.

E viu uma sombra grande,
Que mui devagar caminha;
Quis rezar, benzeu-se errado,
Não deu co a Salve Rainha.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, dia, fia;
Eu canto à minha candeia;
Guarda-me a Virgem Maria.

O andar do fantasma branco
Nenhum ruído fazia;
Parou, e pôs nela os olhos;
Mas eram terra, não via.

Estendeu-lhe os braços longos,
E cuma voz, como brisa,
Lhe diz: "Eu sou Dom Giraldo,
"Que em mim já se não divisa.

"Tu buscavas o cativo,
"Eu procuro a peregrina;
"Tua alma quer Deus que esteja
"Co meu corpo em Palestina.

"Os nossos Anjos da Guarda
"Deram palavra sem língua,
"Que à meia-noite aqui mesmo
"Findaria a nossa míngua.

"Deus à alma envia um corpo,
"E ao corpo uma alma envia..."
Já estas finais palavras
Dona Ausenda não ouvia.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia,
Que eu canto ao pé da candeia,
Que acendo à Virgem Maria.

Tinha dado a meia-noite,
E Dona Ausenda caíra.
Ai! jaz morta a Dona Ausenda,
Que tantas penas sentira!

Quem há de enterrar seu corpo
Nessa noite desabrida,
Ou quem aos pés da Senhora
A irá sepultar na ermida?

E a alma de Dom Giraldo,
Que tão solitária fica,
Não terá padre que reze
O que por almas se aplica!

Mas nunca mais na floresta
Nenhuma coisa foi vista:
Os que o sítio têm buscado
Nunca lhe acharam a pista.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia
,
E rezo à Virgem Maria.

Nessa noite, à meia-noite,
Indo o sete-estrelo acima,
Calou de repente as vozes
Mocho que mágoas lastima.

E o galo, que por tais horas
Com seu canto à reza excita,
Bateu as asas calado
Ao pé do leito do ermita.

Tocou sem mão a sineta,
Abriu-se a porta da ermida,
As velas do altar acesas,
A Senhora mui garrida.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
E vejo a Virgem Maria.

E entrou a orar um estranho...
Peregrino, ou peregrina,
Que de tudo dava mostras,
E falava em Palestina.

Se ia ou vinha, nunca o disse,
Quando o ermita o requeria,
Que ora falava em ser volta,
Ora falava que se ia.

E disse: "A Deus me encomenda
"Por três, mais três e três dias,
"Que ao cabo de uma novena
"Findarão mil agonias."

Ora nessa mesma noite
Quis a bondade divina,
Que outra novidade grande
Sucedesse em Palestina.

Da cova de Dom Giraldo,
À meia-noite precisa,
Surgiu um corpo defunto,
Que a todos atemoriza.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
Oiça-me a Virgem Maria.

E veio uma alma voando,
Que pelos ares foi vista,
Nossa Senhora a guiava,
Vinha-lhe um Anjo n pista.

Meteu-se dentro ao finado,
E o finado cobrou vida;
Pôs-se co Anjo a caminho;
A Senhora era já ida.

Como a novena acabava
Ao cabo do nono dia,
Vinha pela ermida entrando
Outro romeiro à porfia.

E este assim como o primeiro
Muito ao velho desatina,
Que também não cai na conta
Se é romeiro ou peregrina.

Os dois romeiros se olhavam,
E a mãe dos homens sorria;
O ermita estava pasmado,
E um padre moço apar'cia.

Por debaixo do roquete,
Que era neve sem mentira,
Reluziam duas asas
Ambas de prata e safira.

Tomou-lhe as mãos direitas
Com sinais de muita estima,
E disse: Conjungo-vos:
E pôs-lhe a estola por cima.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
Louvor à Virgem Maria.

Nove anos eram passados,
E após nove anos um dia,
Quando ao dar da meia-noite
Lá na porta se batia.

Como se abriu a capela,
Logo entrou por ela acima
Um caixão com dois defuntos,
Todo de obra muito prima.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
E estou co a Virgem Maria.

Vinham ambos abraçados,
Com mostras de quem dormia,
Com c'roas de flores brancas,
E ninguém os lá trazia.

Mãos que pegavam à argola
Eram mãos que se não viam.
Nem se enxergava a pessoa
Nos cantares que se ouviam.

Dorme, dorme, minha neta,
E tu, fuso, fia, fia;
Eu canto à minha candeia,
Ao pé da Virgem Maria.

Foi escrita esta memória
Numa táboa bem polida,
Que inda agora na Biscaia
Se vai ver àquela ermida.

A campa ficou sem nomes;
Mas toda a gente dizia,
Que era Asenda e Dom Giraldo,
Filhos da Virgem Maria.

Por devoção que um e outro
Com o santo Rosário tinha,
Inda por morte casaram,
Sendo a Senhora madrinha.

Dorme, dorme, minha neta,
Que tenho a roca finda;
Amanhã, querendo a Virgem,
Te direi
outra mais linda.


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