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LUÍS VAZ DE CAMÕES

(1524-1580)


Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dous mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
 Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
 Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
 Porém, para cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa,
Aqui falta saber, engenho e arte.
 
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
 Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
 Mas esta linda e pura semidéia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
 Está no pensamento como idéia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
 
Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.
 Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.
 E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,
 Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.
 
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
 Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saüdades.
 O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
 E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
 
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;
 É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;
 É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
 Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
 

BABEL E SIÃO

Sôbolos rios que vão
Por Babilônia, me achei,
Onde sentado chorei
As lembranças de Sião
E quanto nela passei.
 Ali, o rio corrente
De meus olhos foi manado;
E, tudo bem comparado,
Babilônia ao mal presente,
Sião ao tempo passado.
 Ali, lembranças contentes
Na alma se representaram;
E minhas cousas ausentes
Se fizeram tão presentes
Como se nunca passaram.
 Ali, depois de acordado,
Co rosto banhado em água;
Deste sonho imaginado,
Vi que todo o bem passado,
Não é gosto, mas é mágoa.
 E vi que todos os danos
Se causavam das mudanças
E as mudanças dos anos;
Onde vi quantos enganos
Faz o tempo às esperanças.
 Ali vi o maior bem
Quão pouco espaço que dura;
O mal quão depressa vem,
E quão triste estado tem
Quem se fia da ventura.
 Vi aquilo que mais vale,
Que então se entende melhor,
Quanto mais perdido fôr;
Vi ao bem suceder mal
E ao mal, muito pior.
 E vi com muito trabalho
Comprar arrependimento.
Vi nenhum contentamento,
E vejo-me a mim, que espalho
Tristes palavras ao vento.
 Bem são rios estas águas
Com que banho este papel;
Bem parece ser cruel
Variedades de mágoas
E confusão de Babel.
 Como homem que, por exemplo,
Dos transes em que se achou,
Depois que a guerra deixou,
Pelas paredes do templo
Suas armas pendurou;
 Assim, depois que assentei
Que tudo o tempo gastava,
Da tristeza que tomei,
Nos salgueiros pendurei
Os órgãos com que cantava.
 Aquele instrumento ledo
Deixei da vida passada,
Dizendo: - Música amada,
Deixo-vos neste arvoredo,
À memória consagrada.
 Frauta minha que, tangendo,
Os montes fazíeis vir
P’ra onde estáveis, correndo,
E as águas, que iam descendo,
Tornavam logo a subir,
 Jamais vos não ouvirão
Os tigres, que se amansavam;
E as ovelhas, que pastavam,
Das ervas se fartarão
Que por vos ouvir deixavam.
 Já não fareis docemente
Em rosas tornar abrolhos
Na ribeira florescente;
Nem poreis freio à corrente,
E mais se for dos meus olhos.
 Não movereis a espessura,
Nem podereis já trazer
Atrás vós a fonte pura,
Pois não pudestes mover
Desconcertos da ventura.
 Ficareis oferecida
À Fama, que sempre vela,
Frauta de mim tão querida;
Porque, mudando-se a vida,
Se mudam os gostos dela.
 Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.
 Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já o não vejo:
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
 Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza de humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está recitando a morte!
 Mas deixar nesta espessura
O canto da mocidade!
Não cuide a gente futura
Que será obra da idade
O que é força da ventura.
 Que idade, tempo, o espanto
De ver quão ligeiro passe,
Nunca em mim puderam tanto
Que, posto que deixe o canto,
A causa dele deixasse.
 Mas em tristezas e nojos,
Em gosto e contentamento,
Por sol, por neve, por vento,
Tendré presente a los ojos
Por quien muero tan contento.
 órgãos e frauta deixava,
Despojo meu tão querido,
No salgueiro que ali estava,
Que para troféu ficava
De quem me tinha vencido.
 Mas lembranças da afeição
Que ali cativo me tinha,
Me perguntaram então:
Que era da música minha
Que eu cantava em Sião?
 Que foi daquele cantar
Das gentes tão celebrado?
Por que o deixava de usar?
Pois sempre ajuda a passar
Qualquer trabalho passado.
 Canta o caminhante ledo
No caminho trabalhoso,
Por entre espesso arvoredo;
E de noite o temeroso,
Cantando, refreia o medo.
 Canta o preso docemente,
Os duros grilhões tocando;
Canta o segador contente,
E o trabalhador, cantando,
O trabalho menos sente.
 Eu, que estas cousas senti
Na alma, de mágoas tão cheia,
Como dirá, respondi,
Quem alheio está de si
Doce canto em terra alheia?
 Como poderá cantar
Quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
Canta por menos cansar,
Eu só descansos enjeito.
 Que não parece razão
Nem parece coisa idônea
Por abrandar a paixão,
Que cantasse em Babilônia
As cantigas de Sião.
 Que, quando a muita graveza
De saüdade quebrante
Esta vital fortaleza,
Antes moura de tristeza
Que, por abrandá-la, cante.
 Que, se o fino pensamento
Só na tristeza consiste,
Não tenho medo ao tormento:
Que morrer de puro triste,
Que maior contentamento?
 Nem na frauta cantarei
O que passo e passei já,
Nem menos o escreverei;
Porque a pena cansará
E eu não descansarei.
 Que, se a vida tão pequena
Se acrescenta em terra estranha,
E se Amor assim o ordena,
Razão é que canse a pena
De escrever pena tamanha.
 Porém se, para assentar
O que sente o coração,
A pena já me cansar,
Não canse para voar
A memória em Sião.
 Terra bem-aventurada,
Se, por algum movimento,
Da alma me fores mudada,
Minha pena seja dada
A perpétuo esquecimento.
 A pena deste desterro,
Que eu mais desejo esculpida
Em pedra ou em duro ferro,
Essa nunca seja ouvida,
Em castigo de meu erro.
 E se eu cantar quiser,
Em Babilônia sujeito,
Jerusalém, sem te ver,
A voz, quando a mover,
Se me congele no peito.
 A minha língua se apegue
Às fauces, pois te perdi,
Se, enquanto viver assi,
Houver tempo em que te negue
Ou que me esqueça de ti!
 Mas, ó tu, terra de Glória,
Se eu nunca vi tua essência,
Como me lembras na ausência?
Não me lembras na memória,
Senão na reminiscência.
 Que a alma é tábua rasa
Que com a escrita doutrina
Celeste tanto imagina,
Que voa da própria casa
E sobe à pátria divina.
 Não é logo a saüdade
Das terras onde nasceu
A carne, mas é do Céu,
Daquela santa Cidade
De onde esta alma descendeu.
 E aquela humana figura,
Que cá me pode alterar,
Não é quem se há de buscar:
É raio da Fermosura
Que só se deve de amar.
 Que os olhos e a luz que ateia
O fogo que cá sujeita,
- Não do sol, mas da candeia -
É sombra daquela idéia
Que em Deus está mais perfeita.
 E os que cá me cativaram
São poderosos afeitos
Que os corações têm sujeitos;
Sofistas que me ensinaram
Maus caminhos por direitos.
 Destes o mando tirano
Me obriga com desatino,
A cantar, ao som do dano,
Cantares de amor profano
Por versos de amor divino.
 Mas eu, lustrado co santo
Raio, na terra de dor,
De confusão e de espanto,
Como hei de cantar o canto
Que só se deve ao Senhor?
 Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saüde,
Que ordena que a vida mude:
E o que tomei por vício
Me faz grau para a virtude.
 E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.
 Fique logo pendurada
A frauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;
 Não cativo e ferrolhado
Na Babilônia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.
 E se eu mais der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes.
 E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz!
 Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mundo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.
 A vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me vós não dais a mão.
 No grão dia singular
Que na lira o douto som
Jerusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edom.
 Aqueles que tintos vão
No pobre sangue inocente,
Soberbos co poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.
 E aquele poder tão duro
Dos afeitos com que venho,
Que incendem alma e engenho;
Que já me entraram o muro
Do livre alvídrio que tenho;
 Estes, que tão furiosos
Gritando vêm a escalar-me,
Maus espíritos danosos,
Que querem como forçosos
Do alicerce derrubar-me;
 Derrubai-os, fiquem sós,
De forças fracos, imbeles;
Porque não podemos nós
Nem com eles ir a Vós,
Nem sem Vós tirar-nos deles.
 Não basta minha fraqueza
Para me dar defensão,
Se Vós, Santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.
 E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,
 Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste;
 Quem com disciplina crua
Se fere mais que uma vez,
Cuja alma, de vícios nua,
Faz nódoas na carne sua,
Que já a carne na alma fez.
 E beato quem tomar
Seus pensamentos recentes
E em nascendo os afogar,
Por não virem a parar
Em vícios graves e urgentes;
 Quem com eles logo der
Na pedra de furor santo
E, batendo, os desfizer
Na pedra, que veio a ser
Enfim cabeça do Canto;
 Quem logo, quando imagina
Nos vícios da carne má,
Os pensamentos declina
Àquela carne divina
Que na Cruz esteve já
 Quem do vil contentamento
Cá deste mundo visível,
Quanto ao homem for possível,
Passar logo o entendimento
Para o mundo inteligível:
 Ali achará alegria
Em tudo perfeita e cheia
De tão suave harmonia,
Que nem, por pouca, escasseia
Nem, por sobeja, enfastia.
 Ali verá tão profundo
Mistério na suma Alteza,
Que, vencida a Natureza,
Os mores faustos do mundo
Julgue por maior baixeza.
 Ó tu, divino aposento,
Minha pátria singular,
Se só com te imaginar
Tanto sobe o entendimento,
Que fará se em ti se achar?
 Ditoso quem se partir
Para ti, terra excelente,
Tão justo e tão penitente,
Que, depois de a ti subir,
Lá descanse eternamente!

Dos Lusíadas

As armas e os barões assinalados
Que, da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendem em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloquo e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.

E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Para do mundo a Deus dar parte grande;

Vós, tenro e novo ramo florescente
De uma árvore, de Cristo mais amada
Que nenhuma nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos mostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele para si na Cruz tomou);

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno Templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.

Vereis amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno;
Que não é prêmio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.

(Canto I, vv. 1-80.) 


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