E o abade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bela frase, arranjada em máxima:
-Esta educação faz atletas mas não faz cristãos. Já o tenho dito...-Já o tem dito, abade, já!-exclamou Afonso alegremente.-Diz-mo todas as semanas...Quer você saber, Vilaça? O nosso Custódio mata-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...
Custódio ficou um momento a olhar Afonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião daquele velho fidalgo, senhor de quase toda a freguesia, era uma das suas dores:
-A cartilha, sim, meu senhor, ainda que V. Excelência o diga assim com esse modo escarnica...A cartilha. Mas já não quero falar na cartilha...Há outras coisas. E se o digo tantas vezes, sr. Afonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.
E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custódio jantava na quinta.
O bom homem achava horroroso que naquela idade um tão lindo moço, herdeiro duma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Vilaça a história da D. Cecília Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão tendo passado diante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de crianças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contrição. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira falar! Estas coisas entristeciam. E o sr. Afonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora ali estava o amigo Vilaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o sr. Afonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas duma coisa não o podia convencer, a ele pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do catecismo.
E Afonso da Maia respondia com bom humor:
-Então que lhe ensinava você, abade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que não se deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, porque isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hem? É isso?...
-Há mais alguma coisa...
-Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um pecado que ofende a Deus, já ele sabe que se não deve praticar, porque é indigno dum cavalheiro e dum homem de bem...
-Mas, meu senhor...
-Ouça, abade. Toda a diferença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo às caldeiras de Pêro Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do Céu...
Diálogo entre Afonso da Maia e o Abade Custódio in «Os Maias» de Eça de Queiroz.
Loiola
É um pesadelo a ressoar no ouvido:
-Obedece! Obedece! Obedece!
Num ritmo de prece,
O eco da remota intimação
Ordena à consciência do presente
A mesma penitente
Sujeição.
-Obedece! Obedece!
A razão endurece,
A vontade resiste,
Mas, em nome do eterno
E do inferno
O cantochão insiste:
-Obedece! Obedece!
E o mundo natural
E universal
Que o sol peninsular doira e aquece,
De repente, aparece
Mergulhado
Numa tristeza negra, que arrefece
Num luar de sotaina, regelado.
Torquemada
Há sempre um nome triste
Na longa vida de cada nação.
Um nome que resiste
Ao esquecimento,
E que é um sinal de atenção
Ao pensamento
E ao sofrimento...
Santa Teresa
Terra...
Era em Ávila da Ibéria a minha terra...
Terra!
Mas eu não vi a terra que me teve!
Nem lhe dei o calor que um filho deve
A sua Mãe!
Terra!
Nem lhe sabia o nome verdadeiro!
Nem a cor! nem o gosto! nem o cheiro!
Nem calculava o peso que ela tem!
Terra...
Vai-se embaçando o brilho dos meus olhos
Apodrece o tutano dos meus ossos!
Crescem as unhas doidas dos meus dedos
Contra a palma da mão encarquilhada!
Medra o livor em mim de tal maneira
Que me babo de nojo do meu nada!
Terra!...
E andei eu a morrer a vida inteira!
E andei eu a secar a seiva da raiz
Que do Céu ou do Inferno me prendia
A ti, humana terra de Castela!
Terra!
E andei eu a viver a morte que vivia
Disfarçada em amor na minha cela
Terra!...
E andei eu a negar o amor do mundo,
Quando de pólo a pólo o meu amor podia
Ser sem limites como a alma quer!...
E ser fecundo como a luz do dia!
E dar um filho, porque eu fui mulher!
Terra!...
E andei eu a legar este legado:
"Vivo morrendo primeiro",
Derradeiro Castelo a que subi!...
Terra...
E Deus que prometeu ter-me a seu lado,
Tem-me aqui.
in «Poemas Ibéricos», de Miguel Torga