Rumo a um novo internacionalismo proletário

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1. Trabalhadores em movimento

A primeira Internacional operária nasceu no St. Martin’s Hall de Londres, a 28 de Setembro de 1864, num comício unitário de representantes de trabalhadores franceses e ingleses. Era, acima de tudo, uma associação sindical. A guerra civil norte-americana e o embargo das exportações de algodão haviam provocado uma grave crise na indústria têxtil inglesa. Por outro lado, a burguesia britânica procurava pressionar os salários à baixa com a ameaça de importação de mão de obra barata de França, Bélgica e Alemanha. Foi esta circunstância que levou os trade-unionistas ingleses a abordar a delegação operária francesa à exposição universal de Londres de 1862 com uma proposta de unidade a qual, após uma intensa troca de correspondência, desembocaria na Associação Internacional dos Trabalhadores (A.I.T.) à qual Marx se associaria.

Marx e Engels são os fundadores do socialismo científico mas não do movimento comunista. Eles eram apenas democratas radicais e hegelianos de esquerda quando entraram em contacto com o nascente movimento dos trabalhadores nos meados da década de 1840 (nos clubes operários parisienses ou junto de teóricos alemães como Weitling). Foi no seu seio que eles desenvolveram os conceitos chave de luta de classes e ditadura do proletariado. No calor da luta contra o “espontaneismo”, muito facilmente se omitem estes factos essenciais. Se é verdade que o movimento operário apenas atingiu a adultez em contacto com a ciência (e auto-consciência) que lhe foi aportada por certos elementos radicalizados da pequena-burguesia, não menos verdade é que essa ciência é a ciência de um movimento histórico pré-existente, alimentando-se e reinventando-se constantemente nessa sua pulsação real que é o movimento de uma classe social emergente, em seus avanços, derrocadas, compromissos e hesitações.

Também hoje, a meu ver, a reconstituição do partido proletário passa mais pela organização concreta da jovem vanguarda da classe nas novas frentes de luta do que por elocubrações e decantações puramente intelectuais e livrescas de uma “ciência” suspensa no vazio. É preciso superar a cultura política dos “ismos” sucessivos e dos hífens, mergulhando sem receio na praxis real, onde se forjam e temperam constantemente as novas armas.
O movimento de massas anti-capitalista nos países ocidentais tem estado em estagnação e recuo pelo menos desde os anos 30 (devido a circunstâncias particulares, em Portugal apenas pudemos experimentar essa fase histórica a partir de finais dos anos 70). Foi a partir dessa altura que o movimento operário foi sendo estrangulado pelo compromisso fordista, pela social-democracia e pelo contratualismo social. Nunca mais pudemos livrar-nos deste pântano. A luta de classes foi sanitarizada e confinada aos circuitos institucionalizados, prevenindo-se assim o seu desenvolvimento até às suas formas superiores e finais. Os pequenos círculos revolucionários e marxistas de agitação e propaganda começaram a rodar em torno de si próprios, entre pequenas controvérsias sectárias e uma mediocridade teórica geral. Longe das massas, nenhum progresso teórico real pode ser esperado. Pode-se fazer (e tem-se feito) boa pesquisa e algum trabalho teórico válido em relativo isolamento - é significativo que, nesta segunda metade do século, os grandes autores marxistas deixaram de ser dirigentes políticos. Não se pode, porém, desse modo, desenvolver uma linha política actuante e vitoriosa. Uma círculo vicioso entrou em funcionamento que nos conduziu a uma espiral negativa de desintegração e impotência.

Enquanto isto, nos países do Sul (América Latina, África e Ásia), o movimento laboral tradicional deixava-se geralmente arrastar para a política de bloco dominante nacionalista, com o seu clientelismo corporatista. Muitas vezes, tornou-se uma peça em estratégias de política industrial de substituição de importações.

A partir dos finais da década de 70, porém, o panorama parece mudar, começando a emergir poderosos movimentos laborais independentes em países como o Brasil, Uruguai, El Salvador, África do Sul, Nigéria, Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia e Taiwan. Uma característica comum destes movimentos é não se limitarem a ser organizações sindicais em sentido clássico. Eles não se circunscrevem aos locais de trabalho e a reivindicações ligadas ao contrato laboral, antes se articulam criativamente com organizações de bairro, de mulheres, recreativas, de instrução, etc, formando aquilo que Kim Moody apelida de “sindicalismo de movimento social” (1). É esta característica que - em países de industrialização recente e incompleta - faz deles um poderoso instrumento de formação da própria classe proletária, agregando à volta da minoria dos assalariados industriais permanentes vastas massas populares semi-proletarizadas num movimento de forte vocação política e de intervenção cívica.

Também nos países do centro imperialista, a ofensiva frontal contra o trabalho, iniciada no começo dos anos 80, criou condições novas para o movimento laboral. O contrato social foi rasgado sem cerimónia pela burguesia, pressionada pela crise estrutural do sistema (a inexorável baixa da taxa de lucro). A social-democracia ruiu fragorosamente, enquanto projecto ideológico, político e moral, dando-se um acentuado deslocamento para a direita de todo o espectro político tradicional da sociedade burguesa. Emerge um novo paradigma de organização produtiva: o toyotismo ou produção ágil (lean and mean). Privatização, desregulação, flexibilidade e polivalência, automação, sub-contratação, globalização, são as novas palavras de ordem da administração empresarial - a par de outras que aguardam ainda tradução (kaizen, dowsizing, management-by-stress, just-in-time, total quality management, etc.).

Nestas novas condições sobreveio uma crise acentuada no sindicalismo tradicional, nas suas correntes reformista e reaccionária (o “business unionism”). Por todo o lado há quebras, relativas e absolutas, nos números de sindicalizados. As grandes burocracias sindicais encontram-se na defensiva, flanqueadas por diversos tipos de organizações de base mais democráticas, participativas e militantes. Estas organizações por vezes entram directamente no confronto social, por vezes ainda conseguem empurrar para a frente as pesadas máquinas sindicais. Articulam-se com diversos outros grupos activistas (de desempregados, consumidores, ecologistas, feministas, anti-racistas, etc.) reproduzindo o paradigma do “sindicalismo de movimento social”. Por outro lado, criam-se redes internacionais de solidariedade e informação, nomeadamente com uso da internet, a qual permite coordenar uma reacção instantânea, nos quatro cantos do mundo, a uma agressão sofrido algures por um activista ou um camarada. Permite igualmente organizar rapidamente apoio para uma luta local ao longo de toda uma cadeia produtiva mundializada (2). As lutas dos estivadores, camionistas e na indústria automóvel são pioneiras nesta estratégia de internacionalização. E provaram já uma das fragilidades maiores do sistema de minimalização de existências em stock (o “just-in-time”) próprio das modernas organizações empresariais: um conjunto de paralizações estrategicamente colocadas ao longo de uma cadeia de produção pode conduzir à sua paralização total, causando prejuízos insustentáveis às grandes multinacionais.

O regresso da “questão social” é a grande novidade deste final de milénio. E a estratégia “globalizante” da burguesia, que consiste basicamente em elevar ao paroxismo o mais velho truque no arsenal dos capitalistas - a competição entre os trabalhadores - começa finalmente a encontrar resposta no movimento laboral. Possa deste modo formar-se uma frente mundial, firme e experimentada na luta por direitos e posições adquiridos dos trabalhadores e a ofensiva da burguesia poderá porventura ser contida. A questão, porém, é que - face à insuperável crise de rentabilidade do capital - esta continuada ofensiva da burguesia contra posições dos trabalhadores é absolutamente vital para a sua sobrevivência enquanto classe dominante. Se os trabalhadores, organizados, conseguirem sustê-la nalgum ponto, logo terão de passar à ofensiva porque o sistema, estrangulado, entrará em crise terminal. E será a altura de - com base na sua vanguarda, na fracção mais provada, experiente e cultivada da classe - se criar o partido, desafiando directamente a ditadura da burguesia e da lei do valor à escala mundial. Não há qualquer solução de continuidade entre a luta económica e a luta política do proletariado. É um mesmo movimento, no mesmo trajecto para o poder e a liberdade.

2. Uma via para o partido

O ascenso da maré reivindicativa dos trabalhadores põe assim, inevitavelmente, a questão do poder e dos fundamentos da vida social. É aí que nós vamos reencontrar Karl Marx, bem como a melhor tradição revolucionária do marxismo. Vamos encontrá-lo de novo, a uma nova luz, a partir de nós próprios e da nossa circunstância. A um pensamento tão profundo e enraízado, com uma tal força histórica e material, é inútil tentar encerrá-lo em escolas e tradições sectárias. Ele percorre impetuosamente todo o magma submerso das lutas e fracturas deste século, esperando-nos mais adiante para novas e poderosas irrupções. Dispensa por completo os desvelos escolásticos dos frades copistas da revolução. É por isso que, a meu ver, a questão do partido tem hoje que ser completamente revista e regenerada.

Até aqui predominou o paradigma dos pequenos círculos de leais depositários da “verdadeira linha”. Basta firmar no solo a bandeira e respectiva consigna infalível - legadas por uma cadeia ininterrupta de verdadeiros líderes do proletariado - e esperar que as massas se venham um dia a reunir à sua volta para o assalto final. Desgraçadamente, porém, quando as massas descerem à rua, não vão ter tempo nem ânimo para dar uma olhadela sequer à feira dos impropérios onde as diversas seitas se digladiam ainda pelo título de “verdadeira e única” bandeira do proletariado. Se o fizerem, será sem dúvida apenas como pretexto para uma anedota ocasional.

Nem se pense em superar o sectarismo por uma operação de síntese puramente intelectual, resultado de discussões e compromissos entre revolucionários de várias tendências. Só a praxis real da luta emancipadora dos trabalhadores pode enformar as novas gramáticas da revolução. À espiral negativa da desintegração, afunilamento e impotência tem de suceder-se o círculo virtuoso da solidariedade, da audácia, da reinvenção. É então no seio das multidões em luta concreta pelo pão e pela dignidade que redescobriremos o marxismo, não como tradição literária mas como força material viva e actuante. Os galhos secos do sectarismo (e do oportunismo) cairão por si. A seiva viva da luta continuará a animar o grande tronco da história.

Em termos ideológicos e teóricos, precisamos todos de aprender vencer o medo de perder o pé. Devemos confiar mais na vida e menos nos livros, depósito fossilizado da experiência passada. Uma posição revolucionária de classe não se defende com dogmas mas com trabalho de campo atento, persistente e reflexivo. Do que precisamos afinal para refundar o partido proletário? A meu ver:

1) Um método científico. É o materialismo dialéctico e histórico de Marx. ‘A Ideologia Alemã’, o ‘Anti-Dühring’ e ‘O Capital’ (incluindo a ‘Contribuição’ e os ‘Grundrisse’), são algumas das pedras fundadoras. Atenção e esforço devem ser dedicados à preservação, sem reducionismos, da integralidade da visão materialista do mundo. A história das sociedades humanas é parte integrante da história da matéria em movimento. Dentro do materialismo histórico avulta, naturalmente, a teoria geral do modo de produção capitalista.

2) Um objectivo estratégico. É o comunismo. Embora não o considere prioritário, precisamos de fazer algum trabalho para clarificar e dar mais realidade à nossa visão de conjunto da sociedade do futuro. Questões por resolver: Haverá uma entidade administrativa central numa sociedade comunista ou tratar-se-à de uma sociedade auto-regulada?; Caso ou enquanto exista planeamento e cálculo económico nessa sociedade, que tipo da racionalidade substituirá o funcionamento da lei do valor - o conteúdo em tempo de trabalho concreto medido contra uma unidade natural (ainda por descobrir) que meça directamente o valor de uso?

3) Uma análise das linhas mais gerais da conjuntura histórica actual. Desgraçadamente, os “clássicos” não nos podem ajudar grande coisa aqui. É claro que não vem mal ao mundo em reler-se o ‘Imperialismo’ de Lenine, mas isso simplesmente não chega. É aqui, também, que muita charlatanice sectária tem tentado persistentemente ganhar cidadania teórica. Se bem que uma orientação coerente possa ser útil, deve sopesar-se as suas vantagens com os inconvenientes já bem provados do dogmatismo estéril e do divisionismo, tendo sempre em conta que a análise histórica de uma época muito dificilmente pode ser efectuada, com rigor científico, contemporaneamente e em tempo real. A esta curta distância da linha de rebentação do presente, há sempre um forte ruído de fundo indeterminista que aconselha aqui a dúvida metódica e algum cepticismo.

4) Um programa político, baseado numa teoria da transição para o comunismo. O programa político de um partido proletário digno desse nome tem que encarar de frente o derrube do sistema capitalista e estruturar-se fundamentalmente com vista a esse objectivo. É por isso que sem uma teoria da transição coerente, jamais poderemos ter senão oportunismo programático. A velha dicotomia entre o “programa mínimo” e o “programa máximo” pode ser superada por uma estratégia transicional à maneira trotskista, em que um conjunto de objectivos reformistas avançados são postos de forma a testar os limites de adaptação do sistema capitalista e convencer as massas operárias da necessidade de derrubar o sistema revolucionariamente. O problema, porém, é que sem uma teoria da transição rigorosa e coerente não é possível articular um programa transicional adequado.

5) Alguns princípios sãos de organização. Isto é basicamente o centralismo democrático. Mas o centralismo democrático é apenas uma ideia normativa (de conteúdo algo geométrico) que pode adquirir muito diversas expressões na prática. Ademais, mudanças nos meios de comunicação podem dar lugar a novos princípios organizativos. Particularmente atractivo é, a meu ver, o conceito de organização em rede, inspirado na arquitectura da internet. A um núcleo organizativo central de grande densidade pode ser ligada uma rede mais ou menos dispersa e fluida de outras organizações e indivíduos que, em determinadas circunstâncias, podem ser cativados e mobilizados para formar uma mesma corrente política. O segredo será, então, preservando vigorosamente a unidade e coerência interna do núcleo central, potenciar ao máximo a sua intervenção e garantir uma influência o mais extensa possível no movimento de massas.

6) Um movimento de massas criativo e enérgico, uma liderança capaz e uma sã relação dialéctiva entre os dois. A acção espontânea das massas e a intervenção consciente dos portadores da ciência marxista influenciam-se uma à outra. Da sua interacção recíproca deve resultar uma progressão exponencial, bem como a optimização da eficácia e alcance do movimento.

7) Alguns “bons truques” de táctica e outras dicas recolhidas na história do movimento operário. Nós comunistas pertencemos a uma tradição e temos, pois, uma memória colectiva. Não há aqui, porém, lugar para dogmas. Adaptamos o que virmos que está em condições de servir e na medida em que o esteja. Por exemplo, creio que a “guerra popular” maoista e, em geral, a aliança com o campesinato continua a fazer sentido em certos países do Sul. Quanto às ‘duas tácticas’ de Lenine ou à ‘revolução permanente’ de Trotsky, não vejo já hoje que exista uma revolução burguesa em preparação, seja em que parte for do mundo.

8) Perícia política, alguma sorte e um pouco de ajuda dos nossos amigos. Uma política revolucionária com princípios não pode ser concebida sem uma sólida e firme base teórica. Mas a realidade (sobretudo realidades altamente complexas e dinâmicas) possui um grão muito fino que escapa totalmente à malha larga da teoria. Tal como as leis da física clássica se detêm no limiar do mundo sub-atómico, também quem queira fazer política revolucionária guiado apenas pela teoria cometerá constantemente erros crassos e infantis. No terreno da luta concreta, há que reservar lugar para a avaliação real das forças em presença e valorar sobretudo considerações de oportunidade, eficácia e sentido prático. A luta política revolucionária não se faz aplicando princípios abstractos à realidade, mas olhando o inimigo olhos nos olhos, num jogo de perícia, antecipação, malícia e a mais absoluta implacabilidade.

É assim que os marxistas fazem política. Com um constante movimento do abstracto para o concreto, de volta ao abstracto e logo de novo ao concreto. Especial atenção e apuro crítico são necessários para evitar as ratoeiras do reducionismo. Sem 6), não há grandes hipóteses de progresso decisivo em nenhum dos outros campos. Aliás, de um modo geral, todos estes planos estão em contacto e exercem influência recíproca sobre os demais. É necessário trabalho aturado em todos os campos, com especial urgência em 4), 5) e 6).

O partido proletário é internacional. Mas as organizações políticas que o transportam e actuam devem ser nacionais ou regionais, não submetidas a qualquer directório mundial. Já nos bastou o fiasco da III Internacional como motivo de reflexão. É mil vezes preferível a cooperação horizontal e a coordenação livre e espontânea do que o dirigismo vesgo de “grandes líderes”, os quais - ainda que, hipoteticamente, armados da melhor teoria - não podem humanamente conhecer as condições concretas da luta em todos os azimutes.

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Publicado na revista 'Política Operária', nºs 67, de Novembro-Dezembro de 1998, e 68, de Janeiro-Fevereiro de 1999.

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NOTAS:

(1) Kim Moody, ‘Workers in a Lean World’, Verso Books, Londres-Nova Iorque, 1997.

(2) Eric Lee, ‘The Labour Movement and the Internet - The New Internationalism’, Pluto Press, Londres, 1997.