O PAPEL DO MOVIMENTO DE MULHERES NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA ¾ UMA QUESTÃO DE MICROPOLÍTICA *

RENATA COSTA DE CHRISTO

PROF. HOLGONSI SOARES- Orientador

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* Monografia apresentada ao curso de Especialização em Pensamento Político Brasileiro, da Universidade Federal de Santa Maria (RS), como requisito parcial para a obtenção do grau de ESPECIALISTA.

Santa Maria, outubro de 1998.

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Introdução

Os Novos Movimentos Sociais têm cumprido um importante papel no processo de construção de novas concepções e no questionamento de padrões e valores que impedem o exercício da plena autonomia nas esferas individual e social. Esses Novos Movimentos Sociais desenvolvem uma política pautada na transformação do cotidiano, realizando ações de reelaboração daquelas condições de vida que obstaculizam ou minoram a cidadania.

Dentro dessa perspectiva, o Movimento de Mulheres apresenta-se como um importante instrumento de conquista da cidadania, através da participação no nível micropolítico.

Assim, proponho, no presente trabalho, questionar sobre "o potencial transformador do Movimento de Mulheres da cidade de Santa Maria, bem como sobre a sua efetiva contribuição para a conquista da autonomia feminina nas diversas esferas da vida."

A partir do problema central, proponho ainda discutir sobre as seguintes problemáticas:

¾ Havendo contradições entre os valores propalados pelas organizações femininas e a prática política desenvolvida pelos grupos, como tais contradições podem influenciar no processo de conquista da autonomia?

¾ As experiências coletivas, que formam o MMS, elaboram, autonomamente, suas referências e suas práticas políticas, constituindo-se em verdadeiras identidades ou a autonomia frente a outras organizações coletivas não é um valor contemplado pelos grupos femininos estudados?

O desenvolvimento dessas problemáticas tem como objetivo a análise da prática política das entidades femininas e a sua ligação com o surgimento de uma cidadania fundada na conquista através da participação.

Considerando a importância do intercâmbio entre os atores sociais para a obtenção de transformações que transcendam os níveis individuais e locais, objetivo também analisar a forma de comunicação entre as experiências micropolíticas de luta pela cidadania e a capacidade de interação dos grupos estudados com movimentos sociais heterogêneos e com partidos políticos.

Vários estudos realizados sobre os Novos Movimentos Sociais demonstraram que estes movimentos inauguraram uma prática política avessa à centralização e à burocratização, características das ações coletivas organizadas na forma de sindicatos e partidos políticos. Mas, face a sua fragmentação, os Novos Movimentos Sociais não lograram transformações macro-sociais. Isso demonstra que se faz necessária a reflexão sobre o fenômeno participativo no interior das organizações femininas, bem como sobre os elementos que impedem a formação de Redes de Movimentos Sociais para a realização de mudanças de âmbito global.

Assim sendo, pretendo, através deste trabalho, contribuir com as experiências micropolíticas na reflexão sobre a importância da participação consciente da base dos Movimentos para a conquista e emancipação nas diversas esferas da vida e apontar os possíveis elementos que restringem os êxitos desses Movimentos.

A análise desenvolvida, no presente trabalho, foi centrada na atuação de quatro grupos femininos que se organizaram no município de Santa Maria: o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Urbanas, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais, o Movimento de Mulheres Negras (denominado Grupo Euwa Dandaras) e o Conselho Municipal dos Clubes de Mães.

Para analisar a prática política do Movimento de Mulheres de Santa Maria adotei como técnica de pesquisa a entrevista. A análise da prática política também valeu-se das constatações que obtive nas visitas realizadas aos locais nos quais as mulheres desenvolvem suas atividades, como oportunizaram os grupos que formam o MMTU, o CMCM e o MMTR.

Os valores defendidos pelas organizações femininas foram hauridos dos objetivos que as entidades buscam atingir e de informativos elaborados por entidades estaduais que representam as mulheres e que têm circulação entre os grupos femininos de Santa Maria. Dentre esses informativos, merecem destaque o "Projeto Político do MMTR - RS" e a "Cartilha para Mulheres Candidatas a Vereadoras).

Apesar do referencial teórico configurar um momento preliminar do trabalho, busco retomá-lo em todos os outros momentos da análise, estabelecendo, assim, uma inter-relação entre as teorias embasadoras e a realidade dos movimentos femininos.

O embasamento teórico foi desenvolvido a partir da leitura e análise de obras que desenvolvem os principais conceitos do trabalho (capítulo I), do qual destaco os seguintes autores e obras: Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita); Cornelius Castoriadis (O mundo fragmentado: as encruzilhadas do labirinto); Félix Guattari (Micropolítica. Cartografias do desejo); e Pedro Demo (Participação é conquista).

Capítulo I ¾ Fundamentação Teórica

Pensar o mundo atual é um verdadeiro desafio, pois implica na difícil tarefa de compreender as múltiplas transformações ocorridas em nosso tempo e as suas influências nas esferas individuais e coletivas.

Outras gerações testemunharam grandes mudanças, mas o nosso tempo, marcado pela velocidade e pela efemeridade, impõe-nos uma incessante revolução no cotidiano. O rápido obsoletismo das formas, dos objetos, dos conceitos, que advém do avanço tecnológico, convive com remanescentes do atraso econômico e cultural. Isto remete a um processo permanente ora de reflexão, ora de apatia e perplexidade frente a uma realidade recheada de antagonismos.

Nossas experiências vivenciais são realizadas num contexto de ampla diversidade e trocas culturais, característico de uma sociedade pós-tradicional. Todavia, não podemos afirmar a superação total das tradições, já que em muitos aspectos as tradições tendem a ser resgatadas e mantidas, mas são continuamente confrontadas e questionadas pelas novas concepções produzidas no âmbito da sociedade global. A interrogação e o diálogo são os elementos que melhor definem a sociedade pós-tradicional, pois como explica GIDDENS,

(...) é uma sociedade na qual a tradição muda de status. No contexto de uma ordem cosmopolita e globalizadora, as tradições são constantemente colocadas em contato umas com as outras e forçadas a se declararem.

As transformações oriundas do processo de globalização não são verificadas apenas no nível macro, como o surgimento de organismos supranacionais que minoram a hegemonia dos Estados-nação, mas também redimensionam aspectos da vida local, de forma que esta passa a ser remodelada a partir de acontecimentos de ordem global. Da mesma forma que aspectos globais influenciam acontecimentos de âmbito local ou regional, também os eventos locais podem determinar mudanças que atingem circunstâncias globais. Conforme elucida IANNI,

O local e o global determinam-se reciprocamente, algumas vezes de modo congruente e conseqüente, outras de modo desigual e desencontrado. Mesclam-se e tencionam-se singularidades, particularidades e universalidades.

No nível da política, a sociedade pós-tradicional recria os discursos e as formas de atuação política. Assim, nascem movimentos sociais que tendem a moldar suas estratégias de luta sem recurso aos paradigmas ditados pelas tradições liberal e marxista, enfatizando, no discurso político, as questões temáticas e a subjetividade. Esses movimentos sociais dão ensejo ao surgimento de um novo tipo de democratização: a "democratização dialógica". Esta encontra assento na reflexividade social e avança em relação à democracia liberal, criando formas de intercâmbio social.

O processo de democratização dialógica não visa à obtenção do consenso nem mesmo à proliferação de direitos, mas tem por escopo a promoção do "cosmopolitismo cultural" e a coexistência tolerante entre as várias formas de exercício da identidade. Neste sentido, GIDDENS afirma:

(...) faz sentido pensar numa conexão intrínseca entre democracia, movimentos sociais e grupos de auto-ajuda, originada grande parte no fato de que (em princípio) eles abrem espaços para o diálogo público. Por exemplo, um movimento social pode forçar a entrada no domínio discursivo de alguns aspectos de conduta social que ainda não haviam sido discutidos, ou que foram "resolvidos" pelas práticas tradicionais.

Na era pós-tradicional, os movimentos sociais criam suas próprias cartografias, mesclam ações estratégicas e identitárias com vistas a ampliar o seu rol de conquistas. Por exemplo, como aponta KRISCHKE, o movimento de mulheres, dado o caráter diversificado de sua ação, que inclui a sua inserção nas entidades partidárias, tem obtido grande êxito, tanto ao que concerne a realização de políticas públicas que contemplam as diferenças de gênero, beneficiando especificamente as mulheres, quanto à promoção dos valores de igualdade e solidariedade entre os sexos.

Os novos movimentos sociais tendem a perceber que as suas reivindicações podem se associar às demandas de outros movimentos, ainda que estes tenham surgido em localidades muito distantes. Assim, na medida em que um movimento social interage com outras organizações coletivas, nasce uma nova solidariedade, expressa nas "redes de movimentos". Essas redes oportunizam transformações mais abrangentes, que transcendem os limites locais, pois através da comunicação entre grupos organizados disseminam-se os temas e as estratégias de luta que envolvem a superação de problemas pertinentes às questões da cidadania. Desta forma, as ações coletivas tornam-se aptas para influir na elaboração de políticas gerais de melhoria do contexto societário.

As redes de movimentos brasileiros, nas quais se inserem as ONGs (Organizações não-governamentais), os grupos comunitários e outras formas de organização coletiva, apresentam como características comuns, conforme sugere SHERER-WARREN, a "busca de articulação de atores e movimentos sociais e culturais, transnacionalidade, pluralismo organizacional e ideológico, atuação nos campos cultural e político". Este intercâmbio entre as organizações coletivas, seja para a troca de informações, seja para a atuação conjunta nas atividades de pressão política, levando em conta o pluralismo e a identidade dos grupos, traduz uma concepção política inovadora em relação às práticas tradicionais de cunho vanguardista e uniformizador. Neste sentido, explica ARONOWITZ, os novos movimentos sociais entram nas arenas políticas nacionais e internacionais falando a linguagem do localismo e do regionalismo, um discurso que, apesar de internacionalista, não recorre à solidariedade de classe tradicional como sua principal linha de ataque, mas se dirige ao poder como antagonista. Nisto consiste a originalidade dos movimentos pós-liberais e pós-marxistas.

A política pós-tradicional dos novos movimentos sociais não toma como objetivo precípuo a transformação geral do sistema, mas sim a distribuição do poder de forma a implementar transformações "moleculares", ou seja, de nível micro-social. A partir da atuação em micropolíticas os indivíduos buscam obter melhorias na vida cotidiana, reelaborar condições que não lhes são favoráveis, colocando em pauta as mais diversas problemáticas, como o desequilíbrio ecológico, a poluição, a falta de habitação e saneamento básico, o preconceito racial, a discriminação por orientação sexual e as questões de gênero. Por conseguinte, podem ser relacionadas as micropolíticas com processos de singularização, de valorização da subjetividade no qual se inserem os movimentos sociais. Conforme GUATTARI,

(...) o que caracteriza os novos movimentos sociais não é somente uma resistência contra o processo de serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade originais e singulares, processos de singularização subjetiva.

Apesar de ARONOWITZ afirmar que, na era pós-tradicional, os movimentos sociais são autoproduzidos, tanto no que diz respeito ao surgimento quanto à ideologia que adotam, é observado que, no Brasil, alguns movimentos sociais mantém uma íntima ligação com entidades sindicais e partidárias. Os movimentos sociais retiram daquelas entidades sua orientação ideológica, passando a figurar como coadjuvantes no processo de transformação da vida social. Processo este desencadeado e dirigido por partidos políticos ou sindicatos. O liame que se estabelece entre partidos e determinados movimentos sociais pode comprometer a integração na forma de redes de movimentos, visto que a tendência ideológica e partidária dos movimentos sobrepõem-se às questões de defesa da cidadania e à necessidade de estabelecer uma relação horizontalizada entre atores sociais, pressuposto fundamental para a construção de uma sociedade democrática.

Ainda que não se possa desconsiderar a relevância da articulação entre os partidos políticos e os movimentos sociais, uma vez que através das entidades partidárias as reivindicações e os projetos desses movimentos sociais encontram representação e transcendem as transformações locais, a questão da autonomia dos movimentos não pode ser negligenciada. A grande contribuição dos novos movimentos sociais consiste na criação de formas de luta e de defesa da cidadania baseadas na participação sem os limites impostos pela hierarquia, na distribuição do direito de decisão, ou seja, na perspectiva de romper com as práticas autoritárias ainda vigentes na estruturação de determinadas organizações partidárias. Nesse sentido, SHERER detecta que

(...) a relação entre grande parte dos NMS e os partidos políticos é problemática. Isto porque tradicionalmente os partidos políticos no Brasil têm voltado suas costas para a participação popular, à exceção mais recente de alguns setores do PT e algumas iniciativas individuais de outros políticos das chamadas esquerdas. Além disso, os partidos tradicionais têm um modo de fazer política que é a antítese dos valores dos NMS.

As práticas coletivas, expressas nos novos movimentos sociais, como meio de enfrentamento de situações adversas, tanto esvaziam o caráter paternalista das mudanças como dos avanços no contexto societário. Dessa maneira, a partir da atuação participativa dos indivíduos, os avanços passam a configurar conquistas e não mais concessões dos detentores do poder. Daí a relevância dos novos movimentos sociais como instrumento de construção de uma cidadania qualificada, por ser fruto da conquista e ter como cerne a capacidade de criar padrões de convivência social não excludentes, mas que promovam e respeitem as diversidades.

A idéia de cidadania que mais se coaduna com o projeto de democracia dialógica é aquela que toma o indivíduo como sujeito de direitos e que, ao exercê-los influi e delimita as funções do Estado. Tal concepção destaca a interdependência entre cidadania e participação. Esses dois elementos, contudo, não podem ser objeto de concessão do Estado, nem de um segmento social aos demais, nem mesmo de um projeto de política social moldado sem a prévia reflexão e deliberação dos membros da comunidade a que se destina. Isto significa que nenhuma instância social pode conceder a cidadania ou estabelecer os limites da participação, porque do contrário teremos um arremedo de cidadania, viciada na sua origem e deficitária no seu exercício.

A construção da cidadania é um "processo de maturação", pois implica na reflexão sobre valores que foram postos ao longo de nossa história. Estes valores, distanciados da noção de cidadão pleno e participante, condicionam-nos a aceitar formas tuteladas de cidadania que impedem a emancipação como indivíduos e, consequentemente, como sociedade.

A cidadania concedida apresenta a nota do paternalismo e do personalismo, pois sua extensão e conteúdo encontram origem na vontade do ente instituidor. Por ser objeto da benevolência daquele que a institui, funciona como instrumento de domesticação dos indivíduos e controle da vida cotidiana. O mais perverso é que, em sociedades como a brasileira, a concessão de direitos básicos da cidadania não atingem uma grande parte da população, permanecendo esta tolhida dos direitos mais fundamentais do cidadão, ou seja, alheia aos direitos que são inerentes e dignificam a condição humana.

Não se pode emancipar um indivíduo ou uma sociedade. Os indivíduos e as sociedades emancipam-se por si mesmos. FREIRE afirma que "a libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante". A conquista da autonomia passa pelo questionamento de aspectos da nossa subjetividade, assim como sobre o conjunto de significações que permeiam nossas relações sociais. Esta atitude reflexiva desvenda formas seculares e, muitas vezes, sutis de opressão, ao mesmo tempo que potencializa nossa criatividade, nosso poder de transformar o cotidiano. Ratificando, CASTORIADIS aduz que

A autonomia surge, como germe, assim que a interrogação explícita e ilimitada se manifesta, incidindo não sobre "fatos" mas sobre as significações imaginárias sociais e seu fundamento possível. Momento de criação, que inaugura não só outro tipo de sociedade, mas também outro tipo de indivíduos.

Cumpre ressaltar que a mera consciência da opressão não nos faz sujeitos autônomos. Ter consciência sobre as desigualdades, sobre a concentração de poder e privilégios, sobre todas as formas de injustiças e seu fundamento, por si só não transforma a realidade. O sujeito autônomo é aquele capaz de empregar a sua criatividade para realizar transformações. Se a informação e a consciência estão acompanhadas de apatia e resignação não há perspectivas de mudanças, uma vez que, nestas condições, o indivíduo não influi na dinâmica social, nada de novo realiza e, por isso, permanece na mesma condição de objeto daquele que nenhuma consciência possui.

Segundo CASTORIADIS, "A autonomia não é um fim em si; ela é também isso, todavia queremos a autonomia também e sobretudo para estarmos capacitados e livres para fazer coisas".

Cidadania pressupõe a participação dos indivíduos na elaboração de direitos, na instituição das leis que regem as relações sociais. A dependência mútua entre cidadania e participação deve-se ao fato de que o fenômeno participativo impede a estagnação do processo de elaboração de direitos e faz com que os sujeitos tornem-se vigilantes e conscientes da própria condição de cidadãos. Nesse sentido, CASTORIADIS afirma que a autonomia, tomada aqui como sinônimo de cidadania, consiste em elaborar a própria lei. O indivíduo autônomo é aquele que estando sob a égide das leis da sociedade, mesmo que com elas não concorde, participa efetivamente da formação e funcionamento das normas.

A participação organizada, sem rechaçar a relevância da atuação individual, apresenta-se como importante instrumento de fortalecimento das regras democráticas e de construção de uma sociedade mais solidária. Na medida que o compromisso com o bem-estar coletivo passa a ser conciliado com as demandas individuais, surgem formas de organização coletiva que têm por substrato o diálogo e a preocupação em implementar melhorias de vida que transpõem os espaços privados. Nesse aspecto, PEDRO DEMO elucida que

A organização traduz um aspecto importante da competência democrática, por coerência participativa, bem como por estratégia de mobilização e influência. Não interessar-se por formas de participação organizada significa já uma visão ingênua do processo social, porque, por mais crítica que seja a cidadania individual, não quer dizer que tenha relevância social, como estratégia de transformação.

O Movimento de Mulheres é um exemplo de como formas de luta organizada e criativa podem contribuir para a evolução das relações sociais. Através da diversificação das estratégias de conquistas, que variam desde o diálogo do Movimento de Mulheres com entidades partidárias e sindicais, até a inserção do Movimento em outras organizações coletivas baseadas em identidades étnicas, religiosas, etc., as mulheres organizadas forçaram o debate público sobre as relações de gênero.

No Brasil, a ação das mulheres organizadas não é um fenômeno recente. Apesar disso ganhou maior repercussão a partir de 1975 quando, por iniciativa das Nações Unidas, foi proclamado o Ano Internacional da Mulher. Os debates e comemorações promovidos naquela data culminaram no surgimento de organizações feministas como o Centro da Mulher Brasileira, no Rio de Janeiro e o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira, em São Paulo.

Atualmente, o Movimento de Mulheres é uma realidade em quase todo o país, sendo diversos os grupos e organizações femininas que objetivam a superação da discriminação sexual e a implementação de políticas públicas que contemplam as necessidades das mulheres.

Cada vez mais as mulheres destacam-se nas universidades, nas indústrias, nas artes e na política, impulsionadas pela liberalização dos costumes e por fatores econômicos. Esta crescente participação coloca em questão a cristalizada identificação do espaço público como eminentemente masculino. Identificação que resulta da "separação sexual" entre espaço público e privado, legitimadora e mantenedora, como acentua GIDDENS, do poder dos homens sobre as mulheres.

Em nossa sociedade, são sensíveis as transformações oriundas da trajetória do Movimento de Mulheres, contudo as relações sociais ainda desenvolvem-se sob a influência de valores e condições desfavoráveis à plena emancipação feminina. Isto é comprovado nas estatísticas que demonstram que, no mundo do trabalho, ocorre o fenômeno denominado segregação ocupacional por sexo que consiste na dificuldade de acesso das mulheres ao exercício de profissões tradicionalmente masculinas, ainda que as mulheres apresentem a capacitação profissional exigida para o desempenho daquelas atividades.

No campo da política, as mulheres tendem a ampliar sua participação a partir da inclusão das cotas na legislação eleitoral que incentiva o ingresso das mulheres nos cargos representativos. Inobstante a sensível evolução da participação político-partidária das mulheres, é pertinente questionar se as relações entre homens e mulheres, no interior das organizações partidárias, desenvolvem-se de forma igualitária e democrática. Segundo dados estatísticos,

Nos partidos políticos, a situação de desigualdade entre homens e mulheres é também muito grande em termos de representação nas instâncias de poder. Em 1991, o percentual de mulheres presentes nas direções nacionais assim se distribuía por legendas: 6,1% PT, 1,7% PFL, 1,7% PDS, 9,2% PDT, 6,6% PSDB.

A cidadania feminina também sofre minoração diante dos índices de violência e desrespeito aos direitos humanos das mulheres. De acordo com os dados levantados pela THEMIS - Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, no Brasil há uma agressão física contra mulheres a cada quatro minutos, sendo que entre 45% e 60% dos assassinatos de mulheres são cometidos por homens com que as vítimas tiveram algum envolvimento amoroso.

Além das condições já expostas que prejudicam a cidadania feminina, a desigualdade também encontra nascedouro na sutileza com que as relações familiares e amorosas engendram formas de dominação.

Algumas manifestações de amor, respeito e de proteção em relação às mulheres estiveram, e ainda mantêm-se, condicionadas à adesão ao modelo de recato e virtude feminina. Conforme GIDDENS, "o respeito, e até mesmo o amor podem ser formas muito mais poderosas de dominação que o simples uso da força". A força e a violência física dos homens não são os principais sustentáculos do modelo patriarcal. A legitimidade da tradição patriarcal sustenta-se num conjunto de significações que incentiva, nas mulheres, uma postura dócil e resignada bem como o confinamento das mesmas no espaço doméstico.

Embora a violência contra as mulheres tenha sido empregada como instrumento de controle (e hoje ela reflete a própria decadência do sistema patriarcal), ela nunca foi o elemento cerne dos sistemas patriarcais tradicionais. GIDDENS elucida que

Da mesma forma que ocorre com outros sistemas de poder, o patriarcado nunca foi mantido principalmente por meio do uso da violência. O poder dos homens sobre as mulheres tem durado pelo fato de ter sido legitimado com base nos papéis de gênero diferenciados, nos valores a eles associados e em uma separação sexual entre as esferas públicas e privadas.

Esta forma velada de opressão é uma das mais difíceis de se transpor e a sua superação esbarra no medo da solidão e no sentimento de culpa que acomete as mulheres. Se é certo que, na atualidade, muitos dos paradigmas que fundamentam a desigualdade entre os sexos sofrem um processo de desconstituição, os valores tradicionais ainda contam com a ampla e quase inquestionável aquiescência de um grande número de mulheres e homens.

O processo de emancipação requer a construção de uma identidade feminina. Porém, essa identidade não pode ter origem na mera contraposição entre o ser homem e o ser mulher. Dentro desta perspectiva, elabora-se a identidade feminina a partir de um processo de exclusão, ou seja, toma-se a mulher como aquele ser que se define em oposição ao masculino-universal: a mulher é "o outro" ou uma "questão" dentro de um universo masculino e, consequentemente padece de historicidade e tem constantemente ameaçada a sua subjetividade.

Somente num contexto de participação e reflexão, as subjetividades encontram condições para sua afirmação e desenvolvimento. Assim, ressalta a importância da ação feminina organizada como instrumento de criação de formas democráticas de relacionamento entre os indivíduos, no mundo do trabalho, na família, nas instituições educacionais, etc, acenando para uma cidadania que não se esgota na previsão legal de instrumentos para o seu exercício, mas que se realiza no urdimento do cotidiano.

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continuação (análise dos resultados-1)

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