(Sexto
Capítulo de "As aparições do deus Dionísio na Idade Mídia")
Cláudio Cardoso de Paiva, da Universidade Federal da Paraíba
1. O livro, a televisão e a terceira margem da
experiência
2.
Biscoitos finos para as massas
3.
Diferentes leituras da telenovela "Escrava Isaura"
4.
Processos intertextuais, relações intermidiáticas
5.
Elementos trágicos numa obra romântica
1.
O livro, a televisão e a terceira margem da experiência estética
A
idéia de adaptar as obras literárias para a linguagem do vídeo tem despertado
freqüentemente o interesse dos escritores de textos para a televisão, e isto
tem a sabedoria de abrir as portas da percepção para uma atualização do
presente a partir dos clássicos. Ao mesmo tempo, a memória literária, o
passado, a própria História também se atualizam por meio das televisões. A
aparente frivolidade da mídia pode se mostrar fértil permitindo a troca de
experiências entre gerações diferentes e estimular o diálogo entre épocas
distintas.
Contudo
a telenovela já disseminou um estilo de linguagem próprio à mídia
eletrônica e isto implica em riscos para quem se propõe a fundir o mundo
das letras e o mundo das imagens. Convém lembrar, que a linguagem
literária difere da linguagem audiovisual e ambas possuem estilos de
produção, circulação e recepção específicos. A visão e a escuta,
como diriam os antigos, são concessões de divindades diferentes, e geram,
portanto, paixões, percepções e experiências distintas. Além disso, existe
o risco de se banalizar a essência do texto literário em sua adaptação para
o texto imagístico: a inflação de imagens visuais pode fragilizar a diferença
das imagens acústicas pelo expediente da repetição. Enfim, a força
criadora dos livros mantém reservas e exclusividades que têm assegurado a sua
permanência entre os hábitos dos indivíduos cultivados.
Mas
por outro lado, no que concerne ao lado performativo da televisão, é preciso
evitar o risco de saturar as imagens visuais com signos que pertencem à outra
lógica de sentido, e que poderiam prejudicar uma comunicação visual de
qualidade. As letras precisam ser móveis, os signos têm que ser nômades, o
texto escrito precisa ter a agilidade do cinema se quiser ser convincente junto
aos iconofílicos do século XX. As câmeras, lentes, máquinas de visão
obedecem a uma série de exigências e curiosidades que se satisfazem através
das relações exclusivas entre o olho e o espírito.
Constitui
uma competência comunicativa transformar os desafios em oportunidade. Transpor
a arte literária para as máquinas de visão implica sempre numa atitude que
requer perspicácia e sensibilidade. A recepção de um livro adaptado para a
televisão tem a ver com as relações entre a experiência da memória e a
experiência do cotidiano dos indivíduos. Diz respeito à alquimia realizada
entre o antigo e o novo, o moderno e o tradicional. É uma mistura que precisa
ser bem temperada para dar certo.
Existe
de favorável para o narrador pós moderno, o contador de histórias na
televisão, o fato de que o híbrido, o misto, o plural fazem parte das
referências do homem contemporâneo: a sua informação é hipertextual,
o pensamento que o instiga é complexo e a estética que traduz o
espírito do seu tempo, neobarroca.
O
caleidoscópio de imagens proposto pelos audiovisuais (cinema, televisão,
computador que incorporam os textos literários) traduz uma sinergia que
parece satisfazer às exigências da alma atômica do homem no século XX.
O
homem midiático (se) inspira numa atmosfera híbrida, onde aprendeu a se
cultivar em meio aos fragmentos do teatro, literatura, pintura e poesia de todos
os tempos. Acostumou-se a transformar estes fragmentos em substância nutritiva
que lhe permite compreender e interagir na hiperrealidade cotidiana.
Resgatar
as reminiscências literárias e inserí-las no contexto de signagem da
televisão pode ser importante na medida em que compuser uma terceira margem
da experiência. Ao lado da experiência de sociabilidade, o homem pós
moderno também se realiza na experiência cognitiva das informações.
Assim, além da dimensão afetiva e da dimensão informacional, a dimensão
estética se inquieta como uma experiência que se realiza por intermédio
das artes tecnológicas. As telenovelas e a ficção seriada do Brasil
freqüentemente têm cumprido sua função estética. Um dos ingredientes para o
êxito nesta empreitada tem sido a reprodução dos clássicos da literatura, o
que inclusive desperta os indivíduos para a importância da interação entre a
memória e a atualidade.
2.
"Biscoitos finos para as massas"
Hoje
podemos registrar um repertório considerável de obras primas na televisão e
não é por acaso que elas seduzem o público em diversas partes do planeta.
As
telenovelas podem ser interessantes e despertar o telespectador pelo expediente
da surpresa, fugindo ao lugar comum de uma realização muito longa e
repetitiva, apresentando-se como uma espécie de "biscoito fino para as
massas". É sob este prisma que podemos compreender a sua importância,
isto é, elas permitem ao público que não pode ler, receber uma elaboração
estética de qualidade. Elas são, assim, vetores de um tipo de despertar para
as multidões que partilham as imagens fantásticas; elas fazem sonhar
cotidianamente milhões de pessoas. A catarse experimentada pelo público do
cinema se refaz hoje, sob outras modulações, no ato de acompanhar os
capítulos das telenovelas.
Dentre
inúmeras adaptações de livros para a televisão, "A Escrava
Isaura" merece uma apreciação particular. Exibida primeiramente em
1976, é uma produção para o vídeo de um dos livros mais populares do
romantismo brasileiro, escrito por Bernardo Guimarães, em 1875, o qual já fora
aproveitado duas vezes para o cinema, em 1929 e 1949.
3.
Diferentes leituras da telenovela Escrava Isaura
A
narrativa trata da história de Isaura, uma escrava negra de pele branca (1),
bela e cultivada, que desperta a paixão de Leôncio, seu perverso patrão.
Isaura o recusa e se enamora de Tobias, o qual morre queimado, junto com
Malvina, esposa de Leôncio, num incêndio criminoso forjado sob as ordens do
patrão. Aterrorizada, Isaura foge e se faz passar por livre, na cidade de
Barbacena, Minas Gerais, onde atrairá as atenções de Álvaro que deseja
esposá-la. Contudo, a escrava é perseguida por Leôncio, que a descobre, a
desmascara e a traz de volta para Campos. Isaura, continuando a recusar
Leôncio, será obrigada a se casar com um homem que ela não ama. No final da
história Alvaro reaparece trazendo consigo a carta de alforia que libertará
Isaura, com quem casará, enquanto que Leôncio se mata.
"Escrava
Isaura" é um drama típico do romance burguês que conquistou o
público brasileiro e adaptado para a televisão, obteve sucesso no mundo
inteiro, incluindo países tão distintos como a China, Cuba, Portugal e
França.
No
mercado internacional da cultura de massa, a ficção de "A Escrava
Isaura" é um produto bem comercializável. Ela contém uma carga
simbólica que pode produzir liames de identificação em qualquer cultura
porque suscita a indignação face às situações de ultrage, aviltamento e
exploração.
A
telenovela "A Escrava Isaura", revisitando o problema da
escravidão no Brasil do século XIX, tocou num problema ainda muito sensível.
Numa nação mestiça, as formas do racismo e da intolerância portam uma
tonalidade particular, em que se misturam as formas da integração e da
exclusão, em relação à estratificação social e à cor da pele. A história
da "Escrava Isaura" lançou um olhar fulminante sobre as formas
do preconceito e do racismo. Mais tarde, a teledramaturgia brasileira,
absorvendo as vibrações do corpo social, em todas as suas cores, vai ensaiar
modulações mais ousadas contra as formas gerais do preconceito e da
intolerância.
É
compreensível que a atriz Lucélia Santos, intérprete do personagem de Isaura,
tenha sido recebida como heroína, na China, e que, em Cuba, o Presidente Fidel
Castro tenha modificado o horário das suas reuniões em razão dos choques de
horário com a difusão da telenovela em seu país.
4.
Processos intertextuais e relações intermidiáticas
Focalizando
esta telenovela atentamos para o fato de que existem diferentes maneiras de ler
e de olhar "Escrava Isaura", uma história criada no século
XIX e que ainda toca a sensibilidade do público às vésperas do século XXI.
O
que haveria mudado na transposição do texto literário para o cinema nos anos
20, e em seguida, nos anos 40? O que teria se modificado na passagem do livro
para o vídeo durante os anos 70, 80, 90, levando em conta todas as suas
redifusões? E mais ainda se considerarmos a sua tradução para as línguas dos
diferentes países em que o produto foi comercializado.
Ocorre
que é muito limitado estudar a obra apenas através do conteúdo da sua
mensagem. É preciso considerar o meio físico de transmissão da narrativa
(livro, cinema, vídeo), sem esquecer as diferentes formas de recepção da
obra. É instigante observar que em diferentes momentos, a relação entre a
obra e o imaginário social, foi distintamente mediatizada pelas tecnologias de
expressão e comunicação.
No
que concerne ao estilo, existe reciprocidade entre as propostas estéticas da
obra romântica do século XIX e as solicitações emocionais do público. As
imagens de "Escrava Isaura" na televisão são mais fortes, no
que concerne ao apelo emocional, do que no texto literário. Os efeitos
técnicos da mídia eletrônica acentuam um dado que já é muito forte no texto
original, ou seja, o seu conteúdo excessivamente emotivo, que arranca as
lágrimas do público, além das fronteiras do tempo e do espaço.
5.
Elementos trágicos numa obra romântica
Na
história, o sofrimento, o desejo de liberdade, o castigo, em seguida a revolta,
a fuga, a redenção e o final feliz compõem um quadro que caracteriza a
representação romântica. A dramatização de "Escrava Isaura"
na ficção televisual enalteceu o lado apolíneo da narrativa. O trágico
dionisíaco quase sucumbiu a um tipo de idealização platônica, que abrandou o
pathos da trama. Contudo, Dionísio estará presente como nunca; e isto
nos parece provocante, ou seja, pensar a aparição do "noturno" numa
paisagem regida pelo "diurno". Como é possível extrair de uma obra
romântica ou de uma narrativa, amaciada pela mídia eletrônica, o seu lado
dionisíaco?
Visualisamos
alguns detalhes que talvez possam reconhecer a presença do dionisíaco através
das brumas românticas de "... Isaura" (2).
O
personagem Leôncio, o senhor dos escravos, frio, lógico e racional é
arrebatado pela paixão desenfreada que nutre por Isaura. Ele é atingido pela
loucura. Enciumado por Isaura, ateia fogo na cabana. O dionisíaco, em cena.
O
personagem de Rosa, uma escrava apaixonada pelo patrão, com inveja de Isaura,
faz feitiçarias e atrai as forças malignas sobre a heroína. No último
capítulo se verá que Rosa, não podendo aceitar a felicidade de Isaura, que
casará com Alvaro, tentará envenená-la: contudo, o feitiço vira contra o
feiticeiro e Rosa morre envenenada. Esta imagem reafirma a parte explícita das
pulsões daimônicas que farão a desordem da narrativa.
Enquanto
isso, o personagem de Isaura possui a aparência apolínea. Ela é cultivada
segundo os padrões da cultura burguesa, fabricada segundo a concepção
estética da "moda" positivista (ética, estética, científica) do
século XIX. Mas podemos perceber que Isaura atrai toda a maldição, a
desordem, o caos sobre si mesma e sobre os que lhe são próximos.
Certamente
existem várias maneiras de contemplar uma obra, além do relativismo
interpretativo das novas ideologias, como o "politicamente correto",
que se presta a muitos disparates. Partindo do pressuposto que existe uma ética
aliada à estética de cada obra, é possível compreender "Escrava
Isaura" através da estética da narrativa, em que inteligência,
sensibilidade e tecnologia ampliam o sentido de uma obra importante.
É
curioso observar que a crítica modernista brasileira, do começo do século,
produziu um texto irreverente que parodia o livro romântico de Bernardo
Guimarães. Como uma provocação ao estilo romântico, o escritor Mário de
Andrade escreveu A Escrava que Não era Isaura, em 1925. A relação do
modernismo com a tradição se fez fulminantemente sob a forma da paródia e da
crítica, e isto é importante também pelo fato de nos abrir múltiplas janelas
para perfazermos -hoje, nos anos 90- uma leitura "descompromissada"
das obras tradicionais, sejam elas barrocas, românticas, realistas, modernas...
ao infinito. O bacanal das imagens midiáticas nos oferece a oportunidade
intertextual de confrontarmos e de relermos todas as re-apresentações de
"Escrava Isaura" e de redescobrir o prazer de novas
interpretações.
A
literatura de Bernardo Guimarães (1840) e a sua paródia, sob a pena de Mário
de Andrade (1925), a versão cinematográfica (em 1920 e 1940), a versão
televisual (nos anos 70, 80, 90) e as traduções da mídia internacional, na
França, China, Cuba, Portugal...), abrem-nos as possibilidades de reler e rever
"...Isaura" através de prismas diferentes, que projetam a ficção
para além de um mero drama estilizado. A "obra aberta" pelos
processos de comunicação multimídia, ou melhor, intermidiática (livro,
filme, vídeo...) se presta a múltiplas interpretações, que nos permitem
observar por diversos ângulos o hibridismo e mestiçagem da cultura no plural
do Brasil.
NOTAS
(1)
Para a sociedade conservadora e racista, no Brasil do século XIX, a cor da pele
significa uma espécie de distinção. A escrava Isaura tem a pele branca, mas a
sua origem é negra, ela é então vítima de um tipo racismo que pode
esclarecer a discriminação no Brasil hoje. Sofrem o preconceito aqueles
associados ao trabalho braçal, àquilo que está associado às classes
subalternas da sociedade. Os negros no Brasil são excluídos por se incluirem
nessa categoria. A discriminação pela cor da pele amplia um tipo de
segregação que vai além do racismo, e a telenovela fará a denúncia desta
forma de preconceito. levando a repensar as formas de intolerância no país das
mestiçagens.
Consultar
a propósito a obra de Gilberto FREYRE, Casa Grande & Senzala,
Editora José Olympio, 1933. E, FERNANDES, F. A Integração
do Negro à sociedade de classes,
S.Paulo: Dominus/EDUSP, 1965 (2 vols.); Consultar também Azevedo, T. Cultura
e situação racial no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1966; BASTIDE, R. As religiões africanas no Brasil, S.Paulo:
Pioneira/EDUSP, 1971; MUNIZ SODRÉ. A verdade seduzida, Por um conceito de
cultura no Brasil, Rio: Codecri, 1983. A propósito da participação dos
negros na criação cultural contemporânea, consultar DANTAS, M. Olodum, De
bloco afro a holding cultural, Salvador: Ed. Fundação Casa de Jorge
Amado/Grupo cultural Olodum,1994.
(2)
Encontramos as visões de elementos trágicos e dionisíacos na literatura
romântica através do livro de Camile PAGLIA, Personas Sexuais, S.Paulo:
Companhia das Letras, 1990. Consultar particularmente o capítulo XVII
"Sombras românticas em Emilie Bronté" e o capítulo XVIII
"Sombras românticas em Swin, Burne e Pater".