Vida e Obra de Bernardo Guimarães
  poeta e romancista brasileiro [1825-1884 - biografia]

 
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O Ermitão do Muquém

Ao leitor

Cumpre-me dizer duas palavras ao leitor a respeito da composição do presente romance, o qual (seja dito de passagem) repousa sobre uma tradição real mui conhecida na província de Goiás.

Consta este romance de três partes muito distintas, em cada uma das quais forçoso me foi empregar um estilo diferente, visto como o meu herói em cada uma dela se vê colocado em uma situação inteiramente nova, inteiramente diversa das anteriores.

A primeira parte está incluída no Pouso Primeiro, e é escrita no tom de um romance realista e de costumes; representa cenas da vida dos homens do sertão, seus folguedos ruidosos e um pouco bárbaros, seus costumes licenciosos, seu espírito de valentia e suas rixas sanguinolentas. É verdade que o meu romance pinta o sertanejo de há um século; mas deve-se refletir, que é só nas cortes e nas grandes cidades que os costumes e usanças se modificam e transformação de tempos em tempos pela continuada comunicação com o estrangeiro e pelo espírito da moda. Nos sertões, porém, costumes e usanças se conservarão inalteráveis durantes séculos, e pode-se afirmar sem receio que o sertanejo de Goiás ou de Mato Grosso de hoje é com mui pouca diferença o mesmo que o do começo do século passado.

Do meio d'essa sociedade tosca e grosseira do sertanejo o nosso herói passa a viver vida selvática no seio das florestas no meio dos indígenas. Aqui força é que o meu romance tome assim certos ares de poema. Os usos e costumes dos povos indígenas do Brasil estão envoltos em trevas, suas história é quase nenhuma, incompletas e sem nexo. O realismo de seu viver nos escapa, e só nos resta o idealismo, e esse mui vago, e talvez em grande fictício. Tanto melhor para o poeta e o romancista; há largas enchanças para desenvolver os recursos de sua imaginação. O lirismo, pois, que reina n'esta segunda parte, a qual abrange os Pousos Segundo e Terceiro, é muito desculpável; esse estilo um pouco mais elevado e ideal era o único que quadrava aos assuntos que eu tinha de tratar, e às circunstâncias de meu herói.

O misticismo cristão caracteriza essencialmente a terceira parte, que compreende o quarto e último pouso.

Aqui há a realidade das crenças e costumes do cristianismo, unida à ideal sublimidade do assunto. Reclama pois esta parte um outro estilo, em tom mais grave e solene, uma linguagem como essa que Chateaubriand e Lamartine sabem falar quando tratam de tão elevado assunto.

Bem sei que a empresa é superior às minhas forças; bom ou mau, aí entrego ao público o meu romance; ele que o julgue.

Ouro Preto, 10 de novembro de 1858

O Autor


Resumo
O Ermitão de Muquém
(trecho do livro inédito "Bernardo Guimarães, o
romancista da Abolição", de José Armelim)


O romance de estréia de Bernardo Guimarães tem como cenário os recônditos do sertão goiano. A história é contada em quatro "pousos". Gonçalo é o valentão, a turuna destemido. Por causa da Maroca, com a qual esteve em um baile em casa do Mateus, matou o seu rival no amor, o Reinaldo. E fugiu, indo meter-se entre os xavantes, quando teve de matar muitos índios para se defender.

O cacique Oriçanga admirou-se da destreza de Gonçalo, já que muitos xavantes não puderam com ele. Estes índios vencidos eram comandados por Inimá, noivo da bela Guaraciaba, filha de Oriçanga. Gonçalo mentiu chamar-se Itagiba. Agora seu feroz inimigo e rival era Inimá, pois Itagiba (isto é, o Gonçalo) também passou a amar a Guaraciaba.

Por decisão de Andiara (o pajé) e de Oriçanga (o cacique chefe), dividiram-se os xavantes em duas hostes: uma, comandada por Itagiba (Gonçalo), ficou incumbida de atacar os emboabas; outra, comandada por Inimá, daria ataque aos caiapós. Quem vencesse teria a mão de Guaraciaba.

Itagiba voltou vitorioso e a hoste de Inimá foi derrotada pelos caiapós. Mas Inimá, no dia do casamento de Itagiba com a índia disputada, armou uma cilada com falsos personagens, fazendo crer que Guaraciaba se entregara a outro. Este outro era o irmão dela, o Anhambira.

Itagiba, ignorando a farsa, matou os dois, e fugiu embrenhando-se no mato. Encontrou-se com Inimá. Bateram-se em duelo, com flechas. Itagiba foi mais feliz. Varou o coração do rival com certeira flechada, enquanto a flecha despedida por Inimá não penetrou em Itagiba, pois bateu em uma medalha de Nossa Senhora que este trazia em um cordão. E foi então que Itagiba, ou seja, Gonçalo se tornara ermitão, a tudo renunciando.

Vinte anos depois, a Maroca, a primeira namorada, acompanhada de Mateus, visitaram o ermitão em Muquém, quando então Gonçalo pediu perdão a ambos.

 

O que diz o crítico
Basílio de Magalhães
(1874-1957)

Do romance tradicionalista "O Ermitão do Muquém", primeiro que veio à luz pública, não quis ocupar-se o crítico sergipano [Silvio Romero]. Teria ele incluído entre os que considerou como "simples ensaios, sem alento e escrito com descuido"? É possível. Entretanto, apenas apareceu aquela obra, sobre ela emitiu Joaquim Serra, num folhetim da "Reforma" de 7 de novembro de 1869, o seguinte parecer, que integralmente perfilho: "Esse livro, que é também um álbum de lindas paisagens, onde a apulenta natureza tropical brilha com as cores próprias, será, segundo me consta, o primeiro volume de uma série de escritos que, naquele generoso, o poeta dos Cantos da Solidão pretende publicar. Bem-vindos sejam esses volumes, e, enquanto todos não vêm a lume, festejamos o primeiro trabalho, que por si só é assas recomendável! A vida do sertanejo e do índio são os principais elementos dessa lenda; o episódio romanesco é simples e natural. Muitos do leitores do Ermitão preferem, porém, as páginas onde se narram os costumes rudes do homem do sertão àquelas consagradas a pinturas indianas. Acho razão na predileção, porque realmente o valentão de Villa-Boa está melhor retratado do que o cacique dos Chavantes. Gonçalo, Reinaldo, Maróca e o mestre Matheus falam como devem; o mesmo não acontece com Inimá, Oriçanga e Guaraciaba. Deve-se, porém, observar que a narrativa não é feita pelo autor: ele põe na boca de um romeiro todo o conto, e, por isso, os interlocutores quase que não acham em cena. Alguém fala por eles, repetindo a tradição, e esse alguém é um homem que conhece o falar do sertão e ignora a linguagem dos índios. Daí vem o torneio das frases e imagines, mal cabidas nos dizeres de um tamoyo (sic). Falasse o autor, e, nesse caso, o senão do livro seria um defeito capital. Mesmo assim, a pintura de Jaquarassú tem muitos toques perfeitamente indianos".

Logo em começo, reporta-se Bernardo Guimarães às conhecidas peregrinações populares que no Rio de Janeiro, em Minas e em São Paulo se faziam, e ainda se fazem, aos santuários de milagres, para a cura de todos os males físicos e morais. Não me furto ao dever de consignar aqui a seguinte curial ponderação sua: "Os filósofos do século, os apóstolos da descrença, rirem-se, com desdém, dessas ingênuas e tocantes crenças do povo. Todavia, os seus engenhosos raciocínios, os seus sistemas transcendentes, não podem substituir essa fé viva e singela, que alenta e consola o homem do povo, nos trabalhosos caminhos da vida. Embora envolvida no cortejo de mil superstições grosseiras, de mil tradições absurdas, deixemos-lhe essa fé, que o acompanha desde o berço, que bebeu com o leite materno e que o consola em sua hora extrema. Seja embora um erro, é um erro consolador que em nada prejudica ao indivíduo, nem à sociedade. A esses filósofos poderíamos responder, parodiando aqueles versos que Camões põe na boca do Admastor:

"E que nos custa tê-los nesse engano,
Ou seja sobra ou nuvem, sonho ou nada?"

Outra observação é a do mixtum compositum do fetichismo e catolicismo, que domina o rude sentimento religioso do homem do sertão e que Nina Rodrigues estudou magistralmente entre os escravos baianos. Assim, Gonçalo, o protagonista do "Ermitão do Muquém", conduzia à cinta certa mandinga ou caborge, amuleto poderoso, que lhe dera um preto velho, feiticeiro da fama; e do pescoço lhe pendia, em relicário de ouro, uma imagem de Nossa Senhora da Abadia, dádiva materna. E ele, "todas as vezes que achava em apertos, com uma das mãos apalpava o cinturão, em que trazia o talismã da superstição africana, e com a outra levava aos lábios o relicário, confundindo desta maneira, em sua tosca imaginação, o culto da mãe de Deus com uma grosseira feitiçaria".

Conta-se que, na conquista do Peru, ao chefe inca ofereceu o espanhol um relógio, e o padre, que o acompanhava, uma bíblia; levou o inca aquele primeiro presente ao ouvido, e sorriu de prazer, não mais deixando de escutar-lhe, admirado, o tic-tac; mas, pondo ao outro ouvido o livro sagrado e não lhe percebendo igual ruído, arremessou-o prontamente ao chão. Serviu isso, como é tradição, de pretexto ao morticínio daquela adiantada tribo dos naturais sul-americanos. Embora de discutível verosimilhança quanto à expressão conceituosa do índio, é interessante, no "Ermitão do Muquém", o arrazoado de Oriçanga, morubixaba dos chavantes, quando recusa o relógio que lha Gonçalo (Itagiba). "Ah! (murmurou o velho), agradeço-te o mimo precioso que me ofertas e que dá uma alta idéia do artificioso engenho desses que foram os teus senhores, mas porventura o sol e a lua não mêm bastado até hoje para marcar no céu o tempo que vai passando? O pouco, que me resta viver, que me importa medi-lo? Tupã, lá do alto do céu, conta meus dias, e, quando lhe aprouver, ele os cortará...Mas já te compreendo, Itagiba: tu julgas, e com razão, que o tempo, que ainda me resta passar sobre a terra, já não pode ser contado por sóis, nem por luas, porém somente por essas pequeninas porções, que estão marcadas neste instrumento..."

Entre as cenas de costumes sertanejos, há nos capítulos II e III, do "Pouso Primeiro", a do batuque e a da briga dos rivais apaixonados de Maróca, ambas de empolgante realismo. Em "O Seminarista" encontrar-se-á, com tintas menos fortes, para atender à diferença dos meios, uma réplica desses quadros.

Para as comparações, serve-se ordinariamente da nossa fauna e da nossa flora, principalmente quando faz falar o selvícola. Assim, o rio "corre manso e silencioso, como a jibóia escorregando subtilmente pela vereda úmida dos brejos"; as caboclas são "cor de rola" (que linda e feliz imagem!); a moreninha (Maróca) era travessa e viva com uma lontra"; um dos rivais estava "trombudo como uma anta", e ambos "eram como dois cangussús enciumados"; "Guaraciaba cala-se e suspende a respiração, como a rola assustada que interrompe o arrulho, ao ouvir passos na floresta"; rememorando as suas façanhas, a alma do cacique ancião "se expande como o velho e carcomido tronco da floresta, já sem seiva, nem folhagem, cujo calvo tope se enrama de viçosas parasitas e floridas trepadeiras"; "Guaraciaba lançava os seus mimosos braços ao colo de Itagiba e o bafejava com o seu amor, como a baunilha em enlaça os seus tenros vimes ao robusto e altivo tronco do deserto que lhe distila em torno o seu delicioso perfume"; o talhe da índia indignada "eleva-se garboso, como o da ema, rainha das campinas, quando irritada se ergue contra aquele que pretende roubar-lhe o ninho"; a figura colocal de Jaquarassú "surgia no meio  dos mais combatentes, como o corpulento jequitibá por cima da coma ondulante das florestas"; Inimá era "veloz como o saguí"; a canoa, batida pelo tacape, "reboou, dando um lúgubre gemido, como o ronco de uma sucuri das profundezas das águas".

No batuque, servia-se a aguardente lisa (sem mistura) e assada ou queimada (isto é, preparada ao fogo, com limão e açúcar). A este último processo, dá-se em Minas o nome popular de quentão. Entre outras expressões usadas no interior, empregou ele estas: "de viseira fechada (de má catadura), "coser a facadas" (esfaquear), "um vai-de-roda bem esquentado" (vai-de-roda é uma figura coreográfica, que antecede a final do passeio-na roça), "de voata" (de carreira) e "masca de fumo" (pequeno pedaço de tabaco, arrancado ou cortado do rolo e atirado à boca, para ser mascado). Além dos africanismos "mandinga" e caborge", que já citei, usou ele de vários vocábulos tupicos, entre os quais "pituma" (tabaco). Ao lado do lusitanismos, como "embezerrado" e "focinhudo", no sentido  de "amuado" e "carrancudo", vêem-se os brasileirismos "chavasca" (pau tosco), "muchocho" e "bandoleira" (mulher volúvel, este explicável pela significação translata, que já em Portugal se dera ao masculino).

Pensa José Veríssimo ("História da Literatura Brasileira) que houve uns laivos de influência do Guarani no "Ermitão do Muquém". É possível, porque o famoso romance de Alencar apareceu em 1857 e o de Bernardo Guimarães foi escrito no ano seguinte e reduzido a volume em 1869 (não em 1859, como afirma o crítico paraense).

Nota do site: Esse texto foi extraído do livro de Basílio de Magalhães "Bernardo Guimarães - esboço geográfico e crítico", da Typografia do Annuario do Brasil, Rio de Janeiro, edição de 1926.  

 

 

 


Integra do livro
O Ermitão do Muquém (zip)

Trecho

"Na cidade de Goiás, antigamente Vila Boa, existia, há de haver mais de um século, um moço que por suas turbulências e espírito de valentia tinha adquirido a mais estrondosa nomeada por todas aquelas paragens.

Era filho de pais abastados e de boa família; porém educado à larga, abandonado desde a infância a si mesmo, sempre em meio de más companhias, dotado além de tudo de índole inquieta e fogosa, este rapaz, que poderia ser um homem de bem e útil à sociedade, se uma educação regular tivesse dado salutar direção aos instintos de sua natureza, foi-se tornando um valentão famoso, talhado a molde para as galés ou para o patíbulo.

Gonçalo, que assim se chamava, aplicou-se com ardor desde criança ao manejo de armas de toda a qualidade, a domar animais bravos, a caçar, a nadar, enfim a toda sorte de exercícios do corpo os mais rudes e perigosos.

E de feito neste ponto sua educação foi completa; aos vinte anos de idade, não havia em toda capitania quem com mais destreza esgrimisse uma chavasca, quem tivesse olho mais certeiro para uma pontaria, quem melhor se segurasse nos arreios, argüentando os corcovos do burro o mais xucro, e quanto ao nadar, só poderia competir com ele a lontra, ou a capivara.

Era também agilíssimo no jogo da faca; com os pés atados bem juntos e com uma faca em punho desafiava a qualquer, e com tal destreza se defendia que nem assim o podiam tocar.

Era também hábil em manejar as armas dos índios, e sabia atirar a flecha como o mais destro dos Caiapós ou dos Chavantes. Traçava no chão um círculo de dois pés de diâmetro quando muito, entesava o arco, e mandava às nuvens uma flecha; se o ar estava tranqüilo vinha ela cravar-se infalivelmente dentro daquele círculo. Causar-lhe-ia riso a façanha desse camponês da Suíça, do qual se conta que por ordem de um tirano teve de atravessar com uma flecha uma maçã colocada sobre a cabeça de seu filho; Gonçalo teria atravessado um anel.

Mas em vez de pôr ao serviço da pátria e da liberdade sua grande força e valentia, como aquele herói, Gonçalo, áspero e turbulento por natureza e por mania, atirou-se em corpo e alma na carreira da devassidão e tornou-se um completo vadio, um famoso desordeiro." Início do Capítulo I, o Valentão, do Primeiro Pouso, o Crime.